segunda-feira, 18 de maio de 2009

Sobre uma arte ignorada

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos, minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –, o espectador de cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua poltrona, virgem de hábitos e de leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, reinventar as tabelas de valores, enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os séculos liberaram da tarefa de julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope.

Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós o procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. Essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela, monstro de inocência e de rigor...

O cinema começa com o sonoro.

Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.

A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.

Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.

O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.

Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.

Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não reconhece.

A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas eras da humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição.

Tudo está na mise en scène.

A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang, O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano.

Documentário ou Feeria?

A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. A arte é a religião da lucidez.

Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.

O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte.

E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade, o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral, enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se reconciliar com ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse projeto em seu estado de absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade, 90 minutos para nada, pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o mérito de ser real.

Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.

A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feeria, se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a feeria autoriza a mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e a feeria, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável.

Vertigens e cintilações.

A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema.

Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa.

A Fascinação.

A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.

A montagem transparente.

Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência espectatorial a uma arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de Gance, as de Eisenstein, ou a polyvision que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal, traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo calculado, como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de transparente, puramente mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse erro é devido, conforme já destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva do cinema com as artes tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte da montagem, que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível.

Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.

DeMille superior a Hitchcock.

Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os enquadramentos bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal revelador de impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao recente Vertigo de Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como exemplos do que não se deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem, procedem da mesma impotência diante do ator, ao suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o ator, de tudo aquilo que está fora dele, da mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (...), deixando à câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-alívio atormentado e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo desenhar um homem, desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica.

Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço.

Preeminência do ator

Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiria um catálogo precioso, refinado – jóias gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços flamejantes, jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa outra série, navios longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o ator. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos, ele nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço da vida rumo a deus. Não, como em Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo a um criador, tema exterior à mise en scène, mas o homem tornado deus na mise en scène, pela revelação de seus poderes, brecha aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua dupla condição de arte e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por natureza no coração da fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do prazer, exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita do mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig, Mizoguchi[10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim, e que Hawks, Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. Quanto a Bresson, parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la.

Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria preciso demonstrar.

O Mal-entendido.

Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas linhas eu me faço entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias gerais, a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil, sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus personagens, para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Essas obras arejadas, sedutoras, amparadas de todos os prestígios da cor, do espaço e dos sentimentos fortes, das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks), das quais o único tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por sua ausência de justificação, sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São cegueiras desse tipo que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” da tela grande estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, mas Murnau, mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, permanece visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé.

O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal.

A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos.

É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hajji Baba de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela.

Michel Mourlet

[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte.

[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.

[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.

[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.

[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...

[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.

[7] Grifos meus.

[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.

[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.

[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.

[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas.

[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.

[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetiva porque seus colegas não o empregam.

Cahiers du Cinéma nº 98, agosto 1959

Tradução: Luiz Carlos Oliveira Jr.

"Realizador, metteur en scène, cineasta e autor são os principais nomes que designam, através das épocas de um século de cinema, aquele que fez um filme, e depois outro, e depois ainda outros: o primeiro possui uma conotação neutra, como se se tratasse de uma pura atividade material e mecânica, e se aplica a todos, ao passo que os outros três nomes sugerem cada um uma orientação específica no trabalho dos filmes aos quais se relacionam. Metteur en scène nos diz que há, como no teatro, atores e espaço para encenar, e sugere conjuntos de movimento e uma produção de imagens; cineasta, ele, evoca uma demiurgia mais obscura que se interessa mais pelos planos e seus agenciamentos orgânicos que a uma seqüência satisfatória de efeitos visíveis, enquanto que o autor de filme indica imediatamente essa consciência indiscutida de que o detentor do título ocupa uma posição precisa na produção cinematográfica, assume uma posição moderna de responsabilidade - reivindicada por si, reconhecida por outros -, e sugere também um modo individualista de acelerar as coisas e fazer um filme relegando a procura da beleza ou da eficácia, virtudes mais circunspectas, muito aquém da urgência de formular uma verdade ou um conjunto de verdades pessoais."

Jean-Claude Biette, Qu'est'ce qu'un cinéaste?, Trafic n° 18, primavera 1996

Os três espaços

O termo de espaço, no cinema, pode designar três noções diferentes:

1) O espaço pictórico. A imagem cinematográfica, projetada sobre o retângulo da tela - tão fugitiva ou móvel que seja -, é percebida e apreciada como a representação mais ou menos fiel, mais ou menos bela de tal parte do mundo exterior.

2) O espaço arquitetônico. Essas partes do mundo, naturais ou fabricadas, tais que a projeção sobre uma tela as representa, com maior ou menor fidelidade, são providas de uma existência objetiva, podendo, ela também, ser, em tanto que tal, o objeto de um julgamento estético. É com essa realidade que o cineasta se mede no momento da filmagem, que a restitui ou a trai.

3) O espaço fílmico. Na verdade, não é do espaço filmado que o espectador tem a ilusão, mas de um espaço virtual reconstituído no seu espírito, com o auxílio dos elementos fragmentários que o filme lhe fornece.

Esses três espaços correspondem a três modos de percepção pelo espectador da matéria fílmica. Eles resultam também de três abordagens, geralmente distintas, do pensamento do cineasta e de três etapas do seu trabalho, onde ele utiliza, a cada vez, técnicas diferentes. A da fotografia no primeiro caso, a da cenografia no segundo, da mise en scène propriamente dita e da montagem no terceiro. Para cada uma dessas três operações ele se beneficia de colaboradores especializados, os quais é de sua responsabilidade acordar as sensibilidades, a fim de que sua obra forme um todo coerente. Inútil sublinhar que a um contingente enorme de filmes falta essa unidade e que, por exemplo, as ambições da fotografia traem o espírito no qual foi construída a cenografia, uma vez que simplesmente não adensam o esforço de edificação da mise en scène.

Eric Rohmer, L'organisation de l'espace dans le Faust de Murnau, UGE, 1977

Não Toque no Machado (2007) - Jacques Rivette

"(...) Se o filme é fiel ao romance, ele não compartilha sua temporalidade. Há ali um ritmo fulgurante, aquele do teatro filmado (ou da televisão à la Santelli: ah, Le Théâtre de la jeunesse, que maravilha!), com seus cortes abruptos e suas cartelas; e ao mesmo tempo não, não se trata de teatro, trata-se do verdadeiro, do belo cinema clássico - destino do moderno -, e é absolutamente genial."

Orphée, em Préfère l'impair

Europa 2005 - 27 octobre (2006) - Danièle Huillet & Jean-Marie Straub



"(...) Aquele que se debate para criar um espaço realístico deve fazer a mesma coisa com o som. Enquanto escrevo estas linhas posso ouvir sinos de uma igreja badalando ao fundo; agora percebo o zunido de um elevador; o distante, muito abafado tinido de um bonde, o relógio da prefeitura, uma porta se fechando. Todos esses sons existiriam, também, se das paredes do meu quarto, ao invés de ver um homem trabalhando, estivesse testemunhando uma cena comovente e dramática como pano de fundo ao qual esses sons poderiam até assumir um valor simbólico - seria certo então deixá-los de fora? ... No verdadeiro filme sonoro a real dicção, correspondendo ao rosto sem maquiagem num cômodo de fato ocupado, significa a linguagem comum do cotidiano como é falada por pessoas ordinárias."

Carl Theodor Dreyer, Cahiers du Cinéma nº 207, dezembro 1968

Coisas Secretas (2002) - Jean-Claude Brisseau



« Coisas Secretas é de um lirismo perturbador, é uma seta sombria na paisagem do cinema francês. E também uma tentativa rara e rigorosa de tentar juntar, em pouco menos de duas horas sombrias e vivas, um sem fim de desejos, de pistas e de visões. Hitchcock e Sade, Marx e Marc Dorcel, Edgar Allan Poe e Bresson, o filme de empresa irônica e a grandiloqüência discreta dos movimentos dos aparelhos, a frontalidade e a sugestão fantasmagóricas, os mestres e os escravos, a loira e a morena: está tudo lá. Brisseau meteu na boca de uma das suas heroínas, a ex-striper, futura secretária Nathalie (Coralie Revel, que já nos tinha enlouquecido com o seu olhar triste em Les Savates du Bon Dieu), o programa minimal e megalômano do seu cinema: "Ousa!". Não é só uma palavra qualquer. É sim um mini-manifesto, clownesco e radical. Nada de mais sério, portanto.

A quem é que Nathalie diz isso? A Sandrine, empregada na boîte em que as duas se tentam safar, e que se muda para casa dela depois de ter "ousado", ou seja ter chegado ao orgasmo acariciando-se à frente dela. O segredo magnífico do filme é então revelado. É o sexo das mulheres. É o que elas fazem, sozinhas ou a dois, o que nós lhes podemos eventualmente fazer (olhar, tocar?). (...) Coisas Secretas conta a história necessariamente violenta de uma perturbação, e as simulações, reviravoltas, e vertigens que ela provoca. »

Olivier Joyard, Les yeux bandés, Cahiers du Cinéma n° 572, outubro 2002

Adeus ao Sul (1996) - Hou Hsiao-hsien



A visão de Adeus ao Sul se acompanha e deixa atrás de si um sentimento pouco freqüente, mesmo que diga respeito a uma verdade constante do cinema, a de um filme inteiramente fabricado com a luz, em que haveria mais interesse em construir um diagrama luminoso do que em resumir o roteiro – as atribulações de três jovens, dois rapazes e uma menina, entre marginalidade e desejo de se instalar, puerilidade e confrontações – cômicas, dramáticas ou marcada pela mediocridade do cotidiano – a uma realidade que eles não controlam nem compreendem, mas no sei da qual eles procuram todavia se inscrever. O regime luminoso de cada plano merecia ser descrito, pois esses são os planos, seus movimentos e suas variações, que escrevem a história de Adeus ao Sul.

Dez anos antes, em 1986, em Poeira no Vento, a luz total e a obscuridade eram motivos centrais do cinema de Hou Hsiao-hsien: passagem pelo negro total em favor de uma síncope do jovem herói durante a qual ele tem a visão de seu pai andando num túnel, e depois pelo branco total e a resplandecência na saída do túnel. Alternância cuja violência remete a uma aprendizagem da vida mostrada como uma aventura de percepção que deve conduzir o adolescente à descoberta da boa distância, nem muito perto nem muito longe, e sobretudo da boa luz, nem muito viva nem muito sombria. A insistência desses motivos é tão forte para que intervenha em quase todos os filmes de Hou Hsiao-hsien uma cena de falta de eletricidade, justificada ou não pela narrativa. Adeus ao Sul sutiliza essa aproximação – no antigo sentido de tornar sutil, de refinar ao extremo. Antes, sem dúvida faltava o essencial, a gama completa do que existe entre o branco e o negro. Agora se abre todo o espectro das situações luminosas intermediárias. A questão não é alterar o branco e o negro, mas de converter um no outro, estabelecer entre eles uma continuidade.

Um esmigalhamento e uma dispersão da luz, uma aparência de puntilhismo, ou de tachismo cinematográfico responde em Adeus ao Sul a essa exigência de uma luz mais fina. Os planos se rompem em mil pedaços, as fronteiras se enfraquecem, o recorte das coisas torna-se menos franco. Tudo que é visível está no limiar de flutuação do mostrado no não-mostrado – mas somente sugerido ou tido como “já visto”, “demais visto” ou “não merecendo ser visto”. E igualmente para tudo o que é audível. Adeus ao Sul dá a ouvir um encarquilhamento, um canto monótono de barulhos na sua maior parte binários: atritos, estalidos, crepitações, tinidos; pés sobre o chão, uma boca que masca, um trem que parte, um carro que roda, uma moto que tosse, um celular que toca, um jogo de computador que faz barulho, a chuva que cai. Por demais semelhantes, por demais numerosos, por demais dispersos, esses sons cessam de existir independentemente uns dos outros. Por amálgama, um magma unificado de signos não-significantes se forma, toda a banda sonora torna-se uma massa sonora neutra, um imenso barulho de fundo (ou de superfície). Existe barulho na linha, mas pelos obcecados em comunicação, isso é ainda a garantia de que a conexão ainda não se interrompeu.

O tema, se existe um, é elementar, é a vida: a vida como fato enérgico. Daí vem – é um ponto essencial – que o homem não se vê honrado de nenhum privilégio figurativo. O filme não procede somente com a desordenação, ou com o abandono das hierarquias espaciais e narrativas entre personagens principais e secundários. Ele coloca também em igualdade a figura humana com o resto. Os homens, em Adeus ao Sul, estão lá para fazer número. Suas camisas havaianas – a não ser que sejam simplesmente taiwanesas – os ajudam a se fundir no interior da intensa folhagem do plano. Foi isso sobretudo que mudou desde Poeira no Vento: as zonas de sombra não são mais as únicas a encobrir os relevos e a reduzir as diferenças, a própria luz interpreta agora esse papel; mas com um ganho de nuanças e sutileza. Um outro passo é dado com As Flores de Xangai, em que os corpos se superpõem e se conciliam ao cenário, mas em que a luz, mais contrastada, dá ao rosto uma autonomia e uma importância novas, o realça, o coloca à frente, faz dele o lugar do humano por excelência.

Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Uma estranha química trabalha em Adeus ao Sul. O plano, solução aqua-luminosa hiperreativa (cuja tinta dominante varia de acordo com os filtros), torna-se o meio em que o cineasta conduz suas experiências: condensação de energia, precipitações de corpos até então imperceptíveis ou pouco distintos entre si; ou, ao contrário, perda de energia, retorno dos corpos ao indiferenciado – e tudo está a ser retomado. Caso número 1: não muito longe do começo do filme, Biam discute gentilmente com quatro ou cinco amigos mafiosos: conversa mole, troca de amenidades, o sono que espreita; mas subitamente alguém, do nada, começa a chamar Biam pelo apelido infame de “Cabeça chata”. Ele, até então um pouco “vegetal”, joga para o alto tudo o que tem na mão, fica nervosíssimo, começa a gritar, se joga incontido para cima do adversário; zunzum, agarra-agarra, intervenção expressa de Gao – todo mundo acaba por se acalmar. Caso número 2: em outro pedaço do filme, Gao, Cabeça chata e Docinho acabam de ser liberados por seus raptores, no meio da noite e no campo; no finzinho da madrugada, o carro deles vira numa fossa e se enterra por alguns instantes no mato alto; baixa de energia, “pane”, atolamento, retorno à superfície plana e monocromática. Todo Adeus ao Sul passa assim do ruído ao silêncio, do manifesto ao latente, da atualização à desatualização (e inversamente). O plano é tomado entre dois extremos, a erupção e a extinção, mas ele oscila sobretudo em torno de uma posição intermediária, em que aparição e desaparecimento, presença e ausência deixam de se opor em proveito de uma qualidade geral de evanescência. Portanto, ela não é nunca estável nem confortável, mas sempre afetada por um certo grau de volatilidade: Adeus ao Sul pode se ler como a série de esforços constantemente reiterados por alguns jovens adultos para atingir uma existência separada e “normal”, garantir-se um nível de vida médio. A angústia de não conseguir (não ser ninguém, ou ser um frustrado), se traduz primeiramente em termos figurativos e energéticos, e somente depois em termos sociais. Pior ainda que o medo de ser banido do plano está o medo de se dissolver e de desaparecer numa espécie de indistinção ou de anonimato figurativo do qual Biam, o inútil, é a presa mais freqüente e o exemplo mais comovente.

Prova que, como ensina a poética chinesa, o vazio é uma dimensão do cheio. E, simultaneamente, que a abstração não está a ser encontrada fora da imagem, ou mesmo atrás dela, mas nela, na saída do visível (e do audível); o próprio invisível não sendo nada além daquilo que deixou de ser visível ou está à espera de sê-lo. Adeus ao Sul não é tanto um filme abstrato, e sim um que comporta em diversos lugares dimensões e prolongamentos abstratos, quando as figuras saem perigosamente delas mesmas, ou retornam ao fundo de onde tinham primeiramente emergido. A abstração, no limite, é uma qualidade natural do cinema, um hiperrealismo que se obtém à força de fragmentação ou de atomização do visível.

A energia tem toda sua significação envolvida em sua presença, a “besteira” e a fatal repetitividade de um puro . Há energia, há vida: verdade banal que exige entretanto ser sempre novamente redemonstrada. Ser o joguete da energia, é ser o joguete do tempo sem perspectiva do hábito. As existências de Gao, Biam e Docinho se limitam a uma série de gestos simples: beber, comer, brincar e falar como se fosse uma única e mesma coisa, um meio como qualquer outro de “permanecer vivo”; participar dessas reuniões automáticas de amigos em que alguns, a quem não será dirigida a palavra, foram convidados para fazer número, guarnecer o fundo das conversas e das salas de restaurante. Indefinidamente, é preciso lembrar aos outros e lembrar a si mesmo que estamos (ainda) aqui. No hábito se constrói a forma mais acessível, mas também a mais cinzenta, de presente, por simples ocultação do passado e do futuro. Um pouco rapidamente, talvez, disseram que o roteiro de Adeus ao Sul se inspirava no roteiro de Caminhos Perigosos. Se um fio de parentesco passa entre a máfia taiwanesa de Hou Hsiao-hsien e a máfia americano-siciliana de Scorsese, ele deve estar aí: uma vontade de “criar mundo” apoiando-se inicialmente na circulação in vitro de signos de reconhecimento (hábitos, uma linguagem, uma mise en scène, um folclore) e a continuidade de um tempo em comum, do que numa atividade verdadeira; um desejo patético de existir inseparável de uma forma de regressão: criancices excessivas (e grandiosas) dos mafiosos scorseseanos; em Docinho a roupa de boneca, a fixação no polegar e em alguns badulaques florescentes; em Biam a lentidão, o mutismo, a cabeça quente; em Gao, incapacidade dramática de cumprir com seus deveres de adulto (se casar, abrir um restaurante, não ser mais a vergonha de seu pai). Scorsese entretanto redobra esse tempo com uma espessura singular, mitológica e retrospectiva (a música, o cinema), que oferece a seus heróis, mesmo provisoriamente, uma cena para animá-los e projetá-los, enquanto que os de Hou Hsiao-hsien só podem contar com suas próprias forças para se manter na superfície. Nulidade dessas vidas? Talvez não. Vidas, em todo caso, consagradas ao esquecimento permanente e às ressurreições cotidianas à medida que elas não fogem do ciclo de baixas e recrudescências de energia; à medida que não surgir a autoridade de uma decisão, de uma escolha.

O milagre de Adeus ao Sul é que ele fala duas línguas. Aquela, estrangeira para nós, e extra-cinematográfica, da poética chinesa, em que a energia é uma noção fundamental e a interação o princípio de seu funcionamento: haveria no começo de toda realidade, não uma mas duas instâncias, terra/céu, desdobramento/redobramento, contração/expansão, etc. E uma língua mais familiar para um público ocidental, a língua de um mundo contemporâneo à qual não falta nenhum dos temas principais: a “perda dos limites”, a proximidade cada dia maior da velocidade e da estagnação, a comunicação vazia, o prolongamento indefinido da adolescência, a embriaguez sem conteúdo e o tédio permanente, a vizinhança da ociosidade e da ilegalidade; e também, tratando-se do presente de Taiwan, a vontade impossível de sair, de “dar adeus ao sul”. Duas línguas que, misturando-se, engendram um filme inédito, inaudito.

Emmanuel Burdeau, Hou Hsiao-hsien, edições Cahiers du Cinéma, 1999

Van Gogh (1991) - Maurice Pialat







"Caro Maurice,
o seu filme é impressionante, completamente impressionante; muito além do horizonte cinematográfico coberto até aqui pelo nosso ínfimo olhar. O seu olho é um coração que conduz a câmera a passar pelas meninas, pelos rapazes, os espaços, os tempos e as cores, como infantis rajadas de sangue. O conjunto do filme é prodigioso, e os detalhes são iluminações nesse prodígio: vemos o grande céu descer e subir dessa pobre e simples terra. Sinta-se agradecido, você e os seus próximos, por esse sucesso, caloroso, incomparável, palpitante.
Com toda a cordialidade,
Jean-Luc Godard"

Carta de Jean-Luc Godard a Maurice Pialat depois de ter visto Van Gogh.

Nouvelle vague (1990) - Jean-Luc Godard





'Parece que o filme é feito de deslizamentos sucessivos que o fazem balançar plano a plano, como se fosse empurrado levemente pela imagem que ele apresenta de um mundo ao contrário. (...) Que este filme seja feito, que ele tenha sido concebido, que nós sejamos atores espantados e espectadores desorientados, isto é o primeiro passo em direção à materialidade da fábula.'

Jean-Louis Comolli, A rebours?, Cahiers du Cinéma nº 168, julho 1965

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"Se a mise en scène foi, notadamente em Hollywood, o meio pelo qual o cinema nos dizia representar o mundo, cineasta é então aquele que, apesar do que diz publicamente, não se satisfaz de fazer num filme que cinema, e continua até hoje a não satisfazer-se. Assim Godard, desde Acossado, se autoriza dessa insatisfação em relação a uma regra na qual não se devia, em um filme, sair do cinema, o que implica dizer que foi primeiramente e acima de tudo cineasta: um cineasta para quem a disjunção teve que primeiramente efetuar-se, pela não-experiência da mise en scène, sobre uma impressão rosselliniana da realidade conquistada sobre o mundo ambiente. Rouch, como Griffith, havia preparado o terreno com Os Mestres Loucos e Eu, um Negro (na sua renovação do comentário e na sua assunção da experiência pessoal).

Cada cineasta que descobrimos possui uma maneira inédita de se afirmar em um efeito de disjunção que é necessário aprender pouco a pouco a identificar."

Jean-Claude Biette, Qu'est'ce qu'un cinéaste?, Trafic n° 18, primavera 1996

Mon Cas (1986) - Manoel de Oliveira



"A que serve aqui o teatro do plano? Para estabelecer sem o dizer um tipo de manifesto no qual teatro e cinema dialogam e intercambiam seus materiais respectivos a fim de realizar uma perspectivização onde tudo ainda pode vibrar, se modificar, se contradizer."

Jean-Claude Biette, Le gouvernement des films, Trafic nº 25, primavera 1998

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"(...) Mas como o cinema tem uma história e seus espectadores substituem lentamente seus hábitos, as leis que regulam a ilusão (e sua potência) acabam elas também modificadas e começam a obedecer um desvio perceptivo vindo da televisão. É necessário portanto hoje em dia que um filme intensifique seu efeito sobre o espectador se quer existir. A representação das ações humanas no espaço parece não mais bastar: ela está mesmo aparentemente condenada, se seus únicos pontos de apoio são a Realidade.

Ora, hoje em dia, a Realidade, é a realidade mais sua refração midiática. Pode-se excluir essa refração: o que fazem Bresson, Straub, Oliveira. Pode-se incluir essa refração: o que todos fazem ao considerar essa refração como natural e axiomática. Godard a inclui, mas ele é único ao não percebê-la como natural, e sobretudo a não restitui-la como natural."

Jean-Claude Biette, Répertoire incomplet du cynisme, Cahiers du Cinéma nº 377, novembro 1985

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« O velho par teatro-cinema é, bizarramente, o menos carunchoso. Nunca o cinema precisou tanto de um "palco". É normal, já que este é cada vez menos "a sala". Nunca o cinema precisou tanto de duração, ou seja, música. Nem nós, nunca tanto precisáramos dos filmes de Manoel de Oliveira. »

Serge Daney

O Portal do Paraíso (1980) - Michael Cimino



A Fascinação.

A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.

A Caixa de Surpresas (1980) - Paul Newman

"A peça central da carreira de Paul Newman (seu quarto filme, após quase oito anos de silêncio) é, de longe, o melhor filme americano da década. Não apenas por seu tom e ritmo bastante controlado, comovente e inusitado, nem pelos excepcionais atores e atrizes, mas principalmente pelo tratamento de um tema como este, o mais fácil de transformar num dramalhão estúpido. A Caixa de Surpresas é, como Midareru de Mikio Naruse, a prova definitiva de que um grande diretor (e Paul Newman é um dos maiores do seu tempo) pode fazer maravilhas com qualquer argumento, até mesmo com os mais enfadonhos, os menos 'importantes', mesmo que o enredo seja entediante e o final previsível. Uma jóia."

Postcefalu, usuário da IMDb

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"(...) Ainda mais impressionante em sua absoluta modéstia e uma incisiva exploração das últimas faíscas da vida é o seu próximo filme, A Caixa de Surpresas (1980), amplamente não visto e freqüentemente dispensado por ser um telefilme. Este é provavelmente o mais profunda e serenamente pungente filme que já assisti sobre doenças e morte, sobre solidão a despeito do amor e as estranhas, complexas relações tecidas com familiares e amigos próximos. Newman estava abordando o terreno mais perigoso, com o temível assunto da doença terminal e sua agonia. Efeitos forçados, sentimentalismo, melodrama barato e acesso súbito às lágrimas pairam sobre esse tipo de filme, prestes a ruir à mínima menor distração dos seus realizadores. Que Newman tenha completamente e sem esforço visível evitado todas essas armadilhas prova sua maestria consumada como cineasta (ele sabia o que queria deixar fora, bem como o que queria alcançar) e sua maturidade como ser humano. Cassavetes podia ser mais passional, áspero e brutal, e seus filmes eram cheios de energia, mas Newman tinha uma vantagem em precisão e balanço, e a habilidade para mesclar o comportamento mais concreto e realista aos cenários mais abstratos."

Miguel Marias, The Intimate Gaze, Moving Image Source, outubro 2008

O Franco Atirador (1978) - Michael Cimino



O grande filme americano dos anos 70. Com uma ambição imensa, Cimino tenta construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não desprovido de densidade romanesca. No que concerne a força da mise en scène, Cimino é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver, através do seu filme, um herdeiro de Walsh e, especialmente, de The Naked and the Dead. Isso não o impede de conduzir, através dos outros aspectos do filme, uma busca absolutamente pessoal e original. Ele atinge o poderio dramático das cenas pela duração desmesurada das mesmas, o que as torna misteriosas e encantatórias, por um senso quase mágico do cenário e pela atenção a certas características individuais dos personagens, sem qualquer preocupação de rigor dramático aparente. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta; não pelo realismo, mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo em elementos de reflexão moral e filosófica. Os temas privilegiados de tal reflexão dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. A caça, a guerra distante, o jogo cruel da roleta-russa, tudo isso são os motivos dramáticos e visuais, extremamente espetaculares, que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. De acordo com os personagens, veremos esta vontade se destruir, fraturar ou mesmo perdurar, ao transformar-se e mudar de conteúdos. Epopéia do fracasso, O Franco Atirador é também um réquiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefação da América diante da maior derrota da sua história.

Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma: Les Films, Paris: Laffont, 1992.

Tradução: Matheus Cartaxo

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"Se a literatura moderna não tem mais o tempo de contar uma história e se o mito do anti-herói é um pretexto cômodo para resolver problemas que interessam unicamente aos técnicos, quem se encarregará de narrar ao homem sua própria história?"

Jean Domarchi, Le chef-d'oeuvre inconnu, Cahiers du Cinéma nº 39, outubro 1954

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"O cinema é a arte do verdadeiro. O que me entedia no cinema é uma vida caricaturada, deformada, estagnante, homens que não têm alma, um mundo que não reconheço. O único belo é o verdadeiro, só se pode amar o verdadeiro. Adianto que entendo isso de encontro ao sentido em que o entendia Boileau, em que o entendeu o Grande Século; não falo de realismo, seja ele neo-realismo ou só realismo; não falo de De Sica, nem de sordidez ou de miserabilismo. Eu falo do Homem, é justamente isso que faz o artista. Desprezo contos de fada, pantominas, tagarelices mais ou menos engraçadas de um metteur en scène indiscreto, essas intrigas, mais ou menos retorcidas, que não exploram senão as curvas do cérebro de seu inventor. Interesso-me pelos homens e pelas mulheres, por conseguinte me interesso por mim mesmo. Não me sinto tocado senão quando vejo a alma de um homem, ou quando, sem ornamentos nem estardalhaços, alguém se dirige à minha." (...) "O que ele mostrava, e sua franqueza, sua honestidade desconcertava como um soco, era um ser maior que os heróis, mais belo que os deuses; era um homem."

Jacques Serguine, Educação do Espectador, Cahiers du Cinéma nº 111, setembro 1960

Tradução: Luiz Carlos Oliveira Jr.

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Vertigens e cintilações.

A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema.

Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação.

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ARTE POÉTICA

CAPÍTULO I
Da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de imitação


Nosso propósito é abordar a produção poética em si mesma e em seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, e como se deve construir a fábula visando a conquista do belo poético; qual o número e natureza de suas (da fábula) diversas partes, e também abordar os demais assuntos relativos a esta produção. Seguindo a ordem natural, começaremos pelos pontos mais importantes.

2. A epopéia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação.

3. Contudo há entre estes gêneros três diferenças: seus meios não são os mesmos, nem os objetos que imitam, nem a maneira de os imitar.

4. Assim como alguns fazem imitações em modelo de cores e atitudes - uns com arte, outros levados pela rotina, outros com a voz -, assim também, nas artes acima indicadas, a imitação é produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto.

5. Apenas a aulética e a citarística utilizam a harmonia e o ritmo, mas também o fazem algumas artes análogas em seu modo de expressão; por exemplo, o uso da flauta de Pã.

6. A imitação pela dança, sem o concurso da harmonia, tem base no ritmo; com efeito, é por atitudes rítmicas que o dançarino exprime os caracteres, as paixões, as ações.

7. A epopéia serve-se da palavra simples e nua dos versos, quer mesclando metros diferentes, quer atendo-se a um só tipo, como tem feito até ao presente.

8. Carecemos de uma denominação comum para classificar em conjunto os mimos de Sófron(1) e de Xenarco(2),

9. as imitações em trímetros, em versos elegíacos ou noutras espécies vizinhas de metro.

10. Sem estabelecer relação entre gênero de composição e metro empregado, não é possível chamar os autores de elegíacos, ou de épicos; para lhes atribuir o nome de poetas, neste caso temos de considerar não o assunto tratado, mas indistintamente o metro de que se servem.

11. Não se chama de poeta alguém que expôs em verso um assunto de medicina ou de física! Entretanto nada de comum existe entre Homero e Empédocles(3), salvo a presença do verso. Mais acertado é chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, fisiólogo.

12. De igual modo, se acontece que um autor, empregando todos os metros, produz uma obra de imitação, como fez Querémon(4) no Centauro, rapsódia em que entram todos os metros, convém que se lhe atribua o nome de poeta. É assim que se devem estabelecer as definições nestas matérias.

13. Há gêneros que utilizam todos os meios de expressão acima indicados, isto é, ritmo, canto, metro; assim procedem os autores de ditirambos(5), de nomos(6), de tragédias, de comédias; a diferença entre eles consiste no emprego destes meios em conjunto ou em separado.

14. Tais são as diferenças entre as artes que se propõem a imitação.

CAPÍTULO II
Diferentes espécies de poesia segundo os objetos imitados


Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estas não podem ser senão boas ou ruins (pois os caracteres dispõem-se quase nestas duas categorias apenas, diferindo só pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a todos nós.

2. Assim fazem os poetas: Polignoto(7) pintava tipos melhores; Páuson(8), piores; e Dionísio(9), iguais a nós.

3. É evidente que cada uma das imitações de que falamos apresentará estas mesmas diferenças, e também alguns aspectos exclusivos delas, porém inseridos na classificação exposta.

4. Assim na dança, na aulética, na citarística, é possível encontrar estas diferenças;

5. e também nas obras em prosa, nos versos não cantados. Por exemplo, Homero pinta o homem melhor do que é; Cleofonte(10), tal qual é; Hegémon de Tasso(11), o primeiro autor de paródias, e Nicócares(12), em sua Delíade, o pintam pior.

6. O caráter da imitação também existe no ditirambo e nos nomos, havendo neles a mesma variedade possível, como em Os persas e Os ciclopes de Timóteo(13) e Filóxeno(14).

7. É também essa diferença o que distingue a tragédia da comédia: uma se propõe imitar os homens, representando-os piores; a outra os torna melhores do que são na realidade.

CAPÍTULO III
Diferentes espécies de poesia segundo a maneira de imitar


Existe uma terceira diferença em relação à maneira de imitar cada um dos modelos.

2. Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações e numa simples narrativa, seja pela introdução de um terceiro personagem, como faz Homero, seja insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem as ações elas próprias.

3. A imitação é realizada segundo esses três aspectos, como dissemos no princípio, a saber: os meios, os objetos, a maneira.

4. Sófocles(15), por um lado, imita à maneira de Homero, pois ambos representam homens melhores; entretanto ele também imita à maneira de Aristófanes(16), visto ambos apresentarem a imitação usando personagens que agem perante os espectadores. Daí que alguns chamem a essas obras dramas, porque fazem aparecer e agir as próprias personagens.

5. Disto procede igualmente que os dórios atribuem a si a invenção da tragédia e da comédia; e os megarenses também se arrogam a invenção da comédia, como fruto de seu regime democrático; e além desses, também os sicilianos se acham inventores da comédia, por serem compatriotas do poeta Epicarmo(17), que viveu muito antes de Crônidas(18) e de Magnete(19). A criação da comédia é também reclamada pelos peloponésios, que invocam os nomes usados para denominá-la com palavras de seu dialeto, para argumentar ser esta a razão por que a comédia é invenção deles.

6. Pretendem que entre eles a aldeia se chama cvma, enquanto os atenienses a denominam dhmoz, donde resulta que os comediantes derivam o nome da comédia, não do verbo cwmazeiu (celebrar uma festa com danças e cantos), mas de outro fato: por serem desprezados na cidade, eles andam de aldeia em aldeia. Quanto ao verbo agir, que entre eles se diz drau, os atenienses exprimem-no por pratteiu.

7. É bastante o dito, sobre as diferenças da imitação, quanto a seu número e natureza.

CAPÍTULO IV
Origem da poesia. Seus diferentes gêneros.


Parece haver duas causas, e ambas devidas à nossa natureza, que deram origem à poesia.

2. A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos de todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimentamos prazer.

3. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas representações mais exatas. Tal é, por exemplo, o caso dos mais repugnantes animais e dos cadáveres.

4. A causa é que a aquisição de um conhecimento arrebata não só o filósofo, mas todos os seres humanos, mesmo que não saboreiem tal satisfação durante muito tempo.

5. Os seres humanos sentem prazer em olhar para as imagens que reproduzem objetos. A contemplação delas os instrui, e os induz a discorrer sobre cada uma, ou a discernir nas imagens as pessoas deste ou daquele sujeito conhecido.

6. Se acontece alguém não ter visto ainda o original, não é a imitação que produz o prazer, mas a perfeita execução, ou o colorido, ou alguma outra causa do mesmo gênero.

7. Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evidente que os metros são parte do ritmo), nas primeiras idades os homens mais aptos por natureza para estes exercícios foram aos poucos criando a poesia, por meio de ensaios improvisados.

8. O gênero poético se dividiu em diferentes espécies, consoante o caráter moral de cada sujeito imitador. Os espíritos mais propensos à gravidade reproduziram as belas ações e seus realizadores; os espíritos de menor valor voltaram-se para as pessoas ordinárias a fim de as censurar, do mesmo modo que os primeiros compunham hinos de elogio em louvor de seus heróis.

9. Dos predecessores de Homero, não podemos citar nenhum poema do gênero cômico, se bem que deve ter havido muitos.

10. Possuímos, feito por Homero, o Margites(20) e obras análogas deste autor, nas quais o metro iâmbico [ U — ] é o utilizado para tratar esta espécie de assuntos. Por tal razão, até hoje a comédia é chamada de iambo, visto os autores servirem-se deste metro para se insultarem uns aos outros (icmbize iu).

11. Houve portanto, entre os antigos, poetas heróicos e poetas satíricos.

12. Do mesmo modo que Homero foi sobretudo cantor de assuntos sérios (ele é único, não só porque atingiu o belo, mas também porque suas imitações pertencem ao gênero dramático), foi também ele o primeiro a traçar as linhas mestras da comédia, distribuindo sob forma dramática tanto a censura como o ridículo. Com efeito, o Margites apresenta analogias com o gênero cômico, assim como a Ilíada e a Odisséia são do gênero trágico.

13. Quando surgiram a tragédia e a comédia, os poetas, em função de seus temperamentos individuais, voltaram-se para uma ou para outra destas formas; uns passaram do iambo à comédia, outros da epopéia à representação das tragédias, porque estes dois gêneros ultrapassavam os anteriores em importância e consideração.

14. Verificar se a tragédia esgotou já todas as suas formas possíveis, quer a apreciemos em si mesma ou em relação ao espetáculo, já é outra questão.

15. Em seus primórdios ligada à improvisação, a tragédia (como, aliás, a comédia, aquela procedendo dos autores de ditirambos, esta dos cantos fálicos(21), cujo hábito ainda persiste em muitas cidades), a tragédia, dizíamos, evoluiu naturalmente, pelo desenvolvimento progressivo de tudo que nela se manifestava.

16. De transformação em transformação, o gênero acabou por ganhar uma forma natural e fixa.

17. Com referência ao número de atores: Ésquilo foi o primeiro que o elevou de um a dois, em detrimento do coro(22), o qual, em conseqüência, perdeu uma parte da sua importância; e criou-se o protagonista. Sófocles introduziu um terceiro ator, dando origem à cenografia.

18. Tendo como ponto de partida as fábulas curtas, de elocução ainda grotesca, a tragédia evoluiu até suprimir de seu interior o drama satírico; mais tarde, revestiu-se de gravidade e substituiu o metro tetrâmetro (trocaico) pelo trimetro iâmbico.

19. Até então, empregava-se o tetrâmetro trocaico como o modelo mais adequado ao drama satírico e às danças que o acompanhavam; quando se organizou o diálogo, este encontrou naturalmente seu metro próprio, já que, de todas as medidas, a do iambo é a que melhor convém ao diálogo.

20. Prova isto o fato de ser este metro freqüente na linguagem usual dos diálogos, ao passo que o emprego do hexâmetro é raro e ultrapassa o tom habitual do diálogo.

21. Acrescentaram-se depois episódios e outros pormenores, dos quais se diz terem sido embelezamentos.

22. Mas sobre estas questões, basta o que já foi dito, pois seria enfadonho insistir em cada ponto.

CAPÍTULO V
(Da comédia. Comparação entre a tragédia e a epopéia.)


A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo.

2. O ridículo reside num defeito ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento.

3. Não ignoramos nenhuma das transformações da tragédia, nem os autores destas mudanças. Sobre a comédia, que em seus inícios foi menos estimada, nada sabemos. Bem tardiamente o arconte lhe atribuiu um coro, até então composto por voluntários.

4. Só mesmo quando a comédia assumiu certas formas, os poetas que se dizem seus autores começaram a ser citados. Ignora-se quem teve a idéia das máscaras, dos prólogos, do maior número dos atores e de outros pormenores análogos.

5. Os autores das primeiras intrigas cômicas foram Epicarmo(23) e Fórmis(24). Assim, a comédia se originou na Sicília.

6. Em Atenas, foi Crates(25) o primeiro que, renunciando às invectivas em forma iâmbica, começou a compor fábulas sobre assuntos gerais.

7. Quanto à epopéia, por seu estilo corre a par com a tragédia na imitação dos assuntos sérios, mas sem empregar um só metro simples ou forma negativa. Nisto a epopéia difere da tragédia.

8. E também nas dimensões. A tragédia empenha-se, na medida do possível, em não exceder o tempo de uma revolução solar, ou pouco mais. A epopéia não é tão limitada em sua duração; e esta é outra diferença.

9. Se bem que, no princípio, a tragédia, do mesmo modo que as epopéias, não conhecesse limites de tempo.

10. Quanto às partes constitutivas, umas são comuns à epopéia e à tragédia, outras são próprias desta última.

11. Por isso, quem numa tragédia souber discernir o bom e o mau, sabê-lo-á também na epopéia. Todos os caracteres que a epopéia apresenta encontram-se na tragédia também.

12. Falaremos mais tarde da imitação por meio do verso hexâmetro e da comédia.

CAPÍTULO VI
(Da tragédia e de suas diferentes partes)


Falemos da tragédia e, em função do que deixamos dito, formulemos a definição de sua essência própria.

2. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções.

3. Entendo por "um estilo tornado agradável" o que reúne ritmo, harmonia e canto.

4. Entendo por "separação das formas" o fato de estas partes serem, umas manifestadas só pelo metro, e outras pelo canto.

5. Como é pela ação que as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos; além deste, há também o da música e, enfim, a própria elocução.

6. Por estes meios se obtém a imitação. Por elocução entendo a composição métrica, e por melopéia(26) (canto) a força expressiva musical, desde que bem ouvida por todos.

7. Como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem, é de todo modo necessário que estas personagens existam pelo caráter e pelo pensamento (pois é segundo estas diferenças de caráter e de pensamento que falamos da natureza dos seus atos); daí resulta, naturalmente, serem duas as causas que decidem dos atos: o pensamento e o caráter; e, de acordo com estas condições, o fim é alcançado ou malogra-se.

8. A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença.

9.Daí resulta que a tragédia se compõe de seis partes, segundo as quais podemos classificá-la: a fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto (melopéia).

10. Duas partes são consagradas aos meios de imitar; uma, à maneira de imitar; três, aos objetos da imitação; e é tudo.

11. Muitos são os poetas trágicos que se obrigaram a seguir estas formas; com efeito, toda peça comporta encenação, caracteres, fábula, diálogo, música e pensamento.

12. A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.

13. A ação, pois, não de destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres são representados. Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa.

14. Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.

15. Com efeito, na maior parte dos autores atuais faltam os caracteres e de um modo geral são muitos os poetas que estão neste caso. O mesmo sucede com os pintores, se, por exemplo, compararmos Zêuxis(27) com Polignoto; Polignoto é mestre na pintura dos caracteres; ao contrário, a pintura de Zêuxis não se interessa pelo lado moral.

16. Se um autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com sumo cuidado na orientação do estilo e do pensamento, nem por isso realizará a obra que é própria da tragédia. Muito melhor seria a tragédia que, embora pobre naqueles aspectos, contivesse no entanto uma fábula e um conjunto de fatos bem ligados.

17. Além disso, na tragédia, o que mais influi nos ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas peripécias e nos reconhecimentos.

18. Outra ilustração do que afirmamos é ainda o fato de todos os autores que empreendem esta espécie de composição, obterem facilmente melhores resultados no domínio do estilo e dos caracteres do que na ordenação das ações. Esta era a grande dificuldade para todos os poetas antigos.

19. O elemento básico da tragédia é sua própria alma: a fábula; e só depois vem a pintura dos caracteres.

20. Algo de semelhante se verifica na pintura: se o artista espalha as cores ao acaso, por mais sedutoras que sejam, elas não provocam prazer igual àquele que advém de uma imagem com os contornos bem definidos.

21. A tragédia consiste, pois, na imitação de uma ação e é sobretudo por meio da ação que ela imita as personagens em movimento.

22. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do assunto de maneira conveniente; na eloqüência, é essa a missão da retórica, e a tarefa dos políticos.

23. Mas os antigos poetas apresentavam-nos personagens que se exprimiam como cidadãos de um Estado, ao passo que os de agora os fazem falar como retores.

24. O caráter é o que permite decidir após a reflexão: eis o motivo por que o caráter não aparece em absoluto nos discursos dos personagens, enquanto estes não revelam a decisão adotada ou rejeitada.

25. Com relação ao pensamento, consiste em provar que uma coisa existe ou não existe ou em fazer uma declaração de ordem geral.

26. Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a elocução consiste na escolha dos termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, tanto em prosa como em verso.

27. A quinta parte compreende o canto: é o principal condimento (do espetáculo).

28. Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas ela em si não pertence à arte da representação, e nada tem a ver com a poesia. A tragédia existe por si, independentemente da representação e dos atores. Com relação ao valor atribuído à encenação vista em separado, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta.

CAPÍTULO VII
(Da extensão da ação)


Após estas definições, diremos agora qual deve ser a tessitura dos fatos, já que este ponto é a parte primeira e capital da tragédia.

2. Assentamos ser a tragédia a imitação de uma ação completa formando um todo que possui certa extensão, pois um todo pode existir sem ser dotado de extensão.

3. Todo é o que tem princípio, meio e fim.

4. O princípio não vem depois de coisa alguma necessariamente; é aquilo após o qual é natural haver ou produzir-se outra coisa;

5. O fim é o contrário: produz-se depois de outra coisa, quer necessariamente, quer segundo o curso ordinário, mas depois dele nada mais ocorre.

6. O meio é o que vem depois de uma coisa e é seguido de outra.

7. Portanto, para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas.

8. Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem.

9. Por este motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for desmedidamente grande (neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o conjunto escapam à vista do espectador, como seria o caso de um animal que tivesse de comprimento dez mil estádios).

10. Daí se infere que o corpo humano, como o dos animais, para ser julgado belo, deve apresentar certa grandeza que torne possível abarcá-lo com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma extensão tal que a memória possa também facilmente retê-las.

11. A dimensão desta extensão é fixada pela duração das representações nos concursos e pelo grau de atenção de que o espectador é suscetível. Ora, este ponto não depende da arte. Se houvesse que levar à cena cem tragédias, o tempo da representação teria de ser medido pela clepsidra, como antigamente se fazia e ainda é feito em outros lugares, segundo se diz.

12. O limite, com relação à própria natureza do assunto, é o seguinte: quanto mais abrangente for uma fábula, tanto mais agradável será, desde que não perca em clareza. Para estabelecer uma regra geral, eis o que podemos dizer: a peça extensa o suficiente é aquela que, no decorrer dos acontecimentos produzidos de acordo com a verossimilhança e a necessidade, torne em infortúnio a felicidade da personagem principal ou inversamente a faça transitar do infortúnio para a felicidade.

CAPÍTULO VIII
Unidade de ação


O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a presença de uma personagem principal; no decurso de uma existência produzem-se em quantidade infinita muitos acontecimentos, que não constituem uma unidade. Também muitas ações, pelo fato de serem realizadas por um só agente, não criam a unidade.

2. Daí parece que laboram no erro todos os autores da Heracleida, da Teseida(28) e de poemas análogos, por imaginarem bastar a presença de um só herói, como Heracles, para conferir unidade à fábula.

3. Mas Homero, que nisto como em tudo é o que mais se salienta, parece ter enxergado bem este ponto, quer por efeito da arte, quer por engenho natural, pois, ao compor a Odisséia, não deu acolhida nela a todos os acontecimentos da vida de Ulisses, como, por exemplo, a ferida que recebeu no Parnaso ou a loucura que simulou no momento da reunião do exército(29); não era necessário, nem sequer verossímil que, pelo fato de um evento ter ocorrido, o outro houvesse de ocorrer. Em torno de uma ação única, como dissemos, Homero agrupou os elementos da Odisséia e fez outro tanto com a Ilíada.

4. Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da imitação resulte da unidade do objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo.

CAPÍTULO IX

Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.

2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Herodoto {30} fora composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido.

3. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.

4. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos indivíduos; o particular é o que Alcibíades(31) fez ou o que lhe aconteceu.

5. Quanto à comédia, os autores, depois de terem composto a fábula, apresentando nela atos verossímeis, atribuem-nos a personagens, dando-lhes nomes fantasiados, e não procedem como os poetas iâmbicos que se referem a personalidades existentes.

6. Na tragédia, os poetas podem recorrer a nomes de personagens que existiram, e por trabalharem com o possível, inspiram confiança. O que não aconteceu, não acreditamos imediatamente que seja possível; quanto aos fatos representados, não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido impossíveis, não se teriam produzido.

7. Não obstante, nas tragédias um ou dois dos nomes são de personagens conhecidas, e os demais são forjados; em certas peças todos são fictícios, como no Anteu de Agatão(32), no qual fatos e personagens são inventados, e apesar disso não deixa de agradar.

8. Portanto não há obrigação de seguir à risca as fábulas tradicionais, donde foram extraídas as nossas tragédias. Seria ridículo proceder desse modo, uma vez que tais assuntos só são conhecidos por poucos, e mesmo assim causam prazer a todos.

9. De acordo com isto, é manifesto que a missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela imitação, e porque imita as ações.

10. Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis.

11. Entre as fábulas e as ações simples, as episódicas não são as melhores; entendo por fábula episódica aquela em que a conexão dos episódios não é conforme nem à verossimilhança nem à necessidade.

12. Tais composições são devidas a maus poetas, por imperícia, e a bons poetas, por darem ouvido aos atores. Como destinam suas peças a concursos, estendem a fábula para além do que ela pode dar, e muitas vezes procedem assim em detrimento da seqüência dos fatos.

13. Como se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também de imitar fatos capazes de suscitar o terror e a compaixão, e estas emoções nascem principalmente,... (e mais ainda) quando os fatos se encadeiam contra nossa experiência,

14. pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna (com efeito, as circunstâncias provenientes da fortuna nos parecem tanto mais maravilhosas quanto mais nos dão a sensação de terem acontecido de propósito, como, por exemplo, a estátua de Mítis, em Argos, que em sua queda esmagou um espectador, que outro não era senão o culpado pela morte de Mítis),

15. daí resulta necessariamente tais fábulas serem mais belas.

CAPÍTULO X

Das fábulas, umas são simples, outras complexas, por serem assim as ações que as fábulas imitam.

2. Chamo ação simples aquela cujo desenvolvimento, conforme definimos, permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de perípécia, nem de reconhecimento;

3. E ação complexa aquela onde a mudança de fortuna resulta de reconhecimento ou de peripécia ou de ambos os meios.

4. Estes meios devem estar ligados à própria tessitura da fábula, de maneira que pareçam resultar, necessariamente ou por verossimilhança, dos fatos anteriores, pois é grande a diferença entre os acontecimentos sobrevindos por causa de outros e os que simplesmente aparecem depois de outros.

CAPÍTULO XI
(Elementos da ação complexa: peripécias, reconhecimentos, acontecimento patético ou catástrofe.)


A peripécia é a mudança da ação no sentido contrário ao que parecia indicado e sempre, como dissemos, em conformidade com o verossímil e o necessário.

2. Assim, no Édipo(33), o mensageiro que chega julga que vai dar gosto a Édipo e libertá-lo de sua inquietação relativamente a sua mãe, mas produz efeito contrário quando se dá a conhecer.

3. Do mesmo modo, no Linceu(34), trazem Linceu a fim de ser levado à morte e Dânao acompanha-o para matá-lo; mas a seqüência dos acontecimentos tem como resultado a morte do segundo e a salvação do primeiro.

4. O reconhecimento, como o nome indica, faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando o ódio em amizade ou inversamente nas pessoas votadas à infelicidade ou ao infortúnio.

5. O mais belo dos reconhecimentos é o que sobrevém no decurso de uma peripécia,

6. como acontece no Édipo.

Há outras espécies de reconhecimento. O que acabamos de dizer ocorre também com objetos inanimados, sejam quais forem; é matéria de reconhecimento ficar sabendo que uma pessoa fez ou não fez determinada coisa.

7. Mas o reconhecimento que melhor corresponde à fábula é o que decorre da ação, conforme dissemos. Com efeito, a união de um reconhecimento e de uma peripécia excitará compaixão ou terror; ora, precisamente nos capazes de os excitarem consiste a imitação que é objeto da tragédia. Além do que, infortúnio e felicidade resultam dos atos.

8. Quando o reconhecimento se refere a pessoas, às vezes produz-se apenas numa pessoa a respeito de outra(35), quando uma das duas fica sabendo quem é a outra; em outros casos, o reconhecimento deve ser duplo: assim, Ifigênia foi reconhecida por Orestes(36), graças ao envio da carta, mas, para que Orestes o fosse por Ifigênia, foi preciso um segundo reconhecimento.

9. A este respeito, duas partes constituem a fábula: peripécia e reconhecimento; a terceira é o acontecimento patético (catástrofe). Tratamos da peripécia e do reconhecimento;

10. o patético é devido a uma ação que provoca a morte ou sofrimento, como a das mortes em cena, das dores agudas, dos ferimentos e outros casos análogos.

CAPÍTULO XII
(Divisões da tragédia)


Tratamos anteriormente dos elementos da tragédia, e de quais se devem usar como suas formas essenciais. Quanto às partes distintas em que se divide, são elas: prólogo, epílogo, êxodo, canto coral;

2. compreendendo este último o párodo e o estásimo;

3. estas partes são comuns a todas as tragédias; outras são peculiares a algumas peças, a saber, os cantos da cena e os cantos fúnebres.

4. O prólogo é uma parte da tragédia que a si mesma se basta, e que precede o párodo (entrada do coro).

5. O episódio é uma parte completa da tragédia colocada entre cantos corais completos;

6. o êxodo (ou saída) é uma parte completa da tragédia, após a qual já não há canto coral.

7. No elemento musical, o párodo é a primeira intervenção completa do coro;

8. O estásimo é o canto coral donde são excluídos os versos anapésticos (UU—) e os versos trocaicos (—U);

9. O commoz(37) é um canto fúnebre comum aos componentes do coro e aos atores em cena.

Tratamos primeiramente dos elementos essenciais da tragédia, que nela devem figurar; e acabamos de indicar o número das partes distintas em que a peça se divide.

CAPÍTULO XIII
(Das qualidades da fábula em relação às personagens. Do desenlace)


Que fim devem ter os poetas em mira ao organizarem suas fábulas, que obstáculos deverão evitar, que meios devem ser utilizados para que a tragédia surta seu efeito máximo, é o que nos resta expor, depois das explicações precedentes.

2. A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser, não simples, mas complexa; aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de excitar o temor e a compaixão (pois é essa a característica deste gênero de imitação). Em primeiro lugar, é óbvio não ser conveniente mostrar pessoas de bem passar da felicidade ao infortúnio (pois tal figura produz, não temor e compaixão, mas uma impressão desagradável);

3. Nem convém representar homens maus passando do crime à prosperidade (de todos os resultados, este é o mais oposto ao trágico, pois, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito, não inspira nenhum dos sentimentos naturais ao homem – nem compaixão, nem temor);

4. nem um homem completamente perverso deve tombar da felicidade no infortúnio (tal situação pode suscitar em nós um sentimento de humanidade, mas sem provocar compaixão nem temor). Outro caso diz respeito ao que não merece tornar-se infortunado; neste caso o temor nasce do homem nosso semelhante, de sorte que o acontecimento não inspira compaixão nem temor.

5. Resta, entre estas situações extremas, a posição intermediária: a do homem que, mesmo não se distinguindo por sua superioridade e justiça, não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio em conseqüência de algum erro que cometeu; neste caso coloca-se também o homem no apogeu da fama e da prosperidade, como Édipo ou Tiestes ou outros membros destacados de famílias ilustres. Para que uma fábula seja bela, é portanto necessário que ela se proponha um fim único e não duplo, como alguns pretendem; ela deve oferecer a mudança, não da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário, da felicidade para o infortúnio, e isto não em conseqüência da perversidade da personagem, mas por causa de algum erro grave, como indicamos, visto a personagem ser antes melhor que pior.

7.O recurso usado atualmente pelos que compõem tragédias assim o demonstra: outrora os poetas serviam-se de qualquer fábula; em nossos dias, as mais belas tragédias ocupam-se de um muito reduzido número de famílias, por exemplo, das famílias de Alcméon(38), Édipo, Orestes, Meleagro(39), Tiestes, Télefo(40), e outros personagens idênticos, que tiveram de suportar ou realizar coisas terríveis.

8. Esta é, segundo a técnica peculiar à tragédia, a maneira de compor uma peça muito bela.

9. Por isso, erram os críticos de Eurípides(41), quando o censuram por assim proceder em suas tragédias, que na maioria das vezes terminam em desenlace infeliz. Como já dissemos, tal concepção é justa.

10. A melhor prova disto é a seguinte: em cena e nos concursos, as peças deste gênero são as mais trágicas, quando bem conduzidas; e Eurípides, embora falhe de vez em quando contra a economia da tragédia, nem por isso deixa de nos parecer o mais trágico dos poetas.

11. O segundo modo de composição, que alguns elevam à categoria de primeiro, consiste numa dupla intriga, como na Odisséia, onde os desenlaces são opostos: há um para os bons, outro para os maus.

12. Esta última categoria é devida à pobreza de espírito dos espectadores, pois os poetas limitam-se a seguir o gosto do público, propiciando o que ele prefere.

13. Não é este o prazer que se espera da tragédia; ele é mais próprio da comédia, pois nesta as pessoas que são inimigas demais na fábula, como Orestes e Egisto(42), separam-se como amigos no desenlace, e nenhum recebe do outro o golpe mortal.

CAPÍTULO XIV
(Dos diversos modos de produzir o terror e a compaixão)


O terror e a compaixão podem nascer do espetáculo cênico, mas podem igualmente derivar do arranjo dos fatos, o que é preferível e mostra maior habilidade no poeta.

2. Independentemente do espetáculo oferecido aos olhos, a fábula deve ser composta de tal maneira que o público, ao ouvir os fatos que vão passando, sinta arrepios ou compaixão, como sente quem ouve a fábula do Édipo.

3. Mas, para obter este resultado pela encenação, não se requer tanta arte e exige-se uma coregia dispendiosa.

4. Os autores que provocam, pelo espetáculo, não o terror, mas só a emoção perante o monstruoso, nada têm em comum com a natureza da tragédia; pois pela tragédia não se deve produzir um prazer qualquer, mas apenas o que é próprio dela.

5. Como o poeta deve nos proporcionar o prazer de sentir compaixão ou temor por meio de uma imitação, é evidente que estas emoções devem ser suscitadas nos ânimos pelos fatos.

6. Examinemos, pois, entre os fatos, aqueles que aparentam a nós serem capazes de assustar ou de inspirar dó. Necessariamente ações desta espécie devem produzir-se entre amigos ou inimigos, ou indiferentes. Se um inimigo mata outro, quer execute o ato ou o prepare, não há aí nada que mereça compaixão, salvo o fato considerado em si mesmo;

8. o mesmo se diga de pessoas entre si estranhas.

9. Mas, quando os acontecimentos se produzem entre pessoas unidas por afeição, por exemplo, quando um irmão mata o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe o filho, ou um filho a mãe, ou está prestes a cometer esse crime ou outro idêntico, casos como estes são os que devem ser discutidos.

10. Nas fábulas consagradas pela tradição, não é permitido introduzir alterações. Digo, por exemplo, que Clitemnestra(43) deverá ser assassinada por Orestes, e Erífila por Alcméon(44),

11. mas o poeta deve ter inventiva e utilizar, da melhor maneira possível, estes dados transmitidos pela tradição. Vamos explicar mais claramente o que entendemos pelas palavras "da melhor maneira possível".

12. Há casos em que a ação decorre, como nos poetas antigos, com personagens que sabem o que estão fazendo, como a Medéia de Eurípedes, quando mata os próprios filhos;

13. Em outros casos, a personagem executa o ato sem saber que comete um crime, mas só mais tarde toma conhecimento do seu laço de parentesco com a vítima, como, por exemplo, o Édipo de Sófocles. O ato produz-se, ou fora do drama representado, ou no decurso da própria tragédia, como sucede com a ação de Alcméon, na tragédia de mesmo nome escrita por Astidamante, ou com a ação de Telégono no Ulisses ferido(45),

14. Existe um terceiro caso: o que se prepara para cometer um ato irreparável, mas age por ignorância, e reconhece o erro antes de agir. Além destes, não há outros casos possíveis;

15. forçosamente, o crime comete-se ou não se comete, com conhecimento de causa, ou por ignorância.

16. De todos estes casos, o pior é o do que sabe, prepara-se para executar o crime porém não o faz; é repugnante, mas não trágico, porque o sofrimento está ausente; por isto ninguém trata semelhante caso, a não ser muito raramente – como acontece,. por exemplo, na Antigona, no caso de Hémon com relação a Creonte(46).

17. O segundo caso é o do ato executado.

18. É preferível que a personagem atue em estado de ignorância e que seja elucidada só depois de praticado o ato; este perde o caráter repugnante e o reconhecimento produz um efeito de surpresa.

19. O último caso é o melhor, como o de Mérope em Cresfonte:(47) ela está para matar o próprio filho, mas não o mata porque o reconhece; e também na Ifigênia, em que a irmã dispõe-se a matar o próprio irmão; e na Hele(48).

CAPÍTULO XV
(Dos caracteres: devem ser bons, conformes, semelhantes, coerentes consigo mesmos)


No que diz respeito aos caracteres, quatro são os pontos que devemos visar.

2. O primeiro é que devem ser de boa qualidade.

3. Esta bondade é possível em qualquer tipo de pessoas. Mesmo a mulher, do mesmo modo que o escravo, pode possuir boas qualidades, embora a mulher seja um ente relativamente inferior e o escravo um ser totalmente vil.

4. O segundo é a conformidade; sem dúvida existem caracteres viris, entretanto a coragem desta espécie de caracteres não convém à natureza feminina.

5. O terceiro ponto é a semelhança, inteiramente distinta da bondade e da conformidade, tais como foram explicadas.

6. O quarto ponto consiste na coerência consigo mesmo, mas se a personagem que se pretende imitar é por si incoerente, convém que permaneça incoerente coerentemente.

7. Um exemplo de caráter inutilmente mau é o de Menelau em Orestes; de um caráter sem conveniência nem conformidade é o de Ulisses lamentando-se na Cila; ou de Melanipo(49) discursando;

9. exemplo de caráter inconstante é Ifigênia, em Áulis, pois em atitude de suplicante não se assemelha ao que mais tarde revelará ser.

10. Tanto na representação dos caracteres como no entrosamento dos fatos, é necessário sempre ater-se à necessidade e à verossimilhança, de modo que a personagem, em suas palavras e ações, esteja em conformidade com o necessário e verossímil, e que ocorra o mesmo na sucessão dos acontecimentos.

11. Portanto é manifesto que o desenlace das fábulas deve sair da própria fábula, e não como na Medéia(50), provir de um artifício cênico (deus ex machina) ou como na Ilíada, a propósito do desembarque das tropas.

12. Este processo deve ser utilizado só em acontecimentos alheios ao drama, produzidos anteriormente, e que ninguém poderia conhecer; ou em ocorrências posteriores que é necessário predizer e anunciar, pois atribuímos aos deuses a faculdade de tudo verem.

13. O irracional também não deve entrar no desenvolvimento dos fatos, a não ser fora da ação, como acontece no Édipo de Sófocles.

14. Sendo a tragédia a imitação de homens melhores que nós, convém proceder como os bons pintores de retratos, os quais, querendo reproduzir o aspecto próprio dos modelos, embora mantendo semelhança, os pintam mais belos. Assim também, quando o poeta deve imitar homens irados ou descuidados ou com outros defeitos análogos de caráter, deve pintá-los como são, mas com vantagem, exatamente como Agatão e Homero pintaram Aquiles.

15. Eis o que se deve observar; é necessário, por outro lado, considerar as sensações associadas necessariamente na peça à arte própria da poesia, pois acontece freqüentemente cometerem-se faltas neste domínio. Mas sobre o assunto falei bastante nos tratados já publicados.

CAPÍTULO XVI
(Das quatro espécies de reconhecimento)


Dissemos acima o que vem a ser o reconhecimento. Das espécies de reconhecimento, a primeira, a mais desprovida de habilidade e a mais usada à falta de melhor, é o reconhecimento por meio de sinais exteriores.

2. Entre estes sinais, uns são devidos à natureza, como "a lança que se vê sobre os Filhos da Terra", ou as estrelas do Tiestes de Cárcino(51);

3. Outros sinais são adquiridos, dos quais uns aderem ao corpo, como as cicatrizes, e outros não fazem parte dele, como os colares ou a cestinha-berço no Tiro.

4. Há duas maneiras, uma melhor e outra pior, de utilizar estes sinais; por exemplo, a cicatriz de Ulisses tornou possível que fosse reconhecido pela ama de uma forma, e de outra pelos porqueiros.

5. Os reconhecimentos, operados pela confiança que o sinal deve gerar, bem como todos os do mesmo tipo, não denotam grande habilidade; são preferíveis os que provêm de uma peripécia, como no Canto do Banho.

6. A segunda espécie é a devida à inventiva do poeta, e por tal motivo não é artística; assim, Orestes, na Ifigênia, faz-se reconhecer declarando ser Orestes, e Ifigênia, graças à carta; mas Orestes declara aquilo que o poeta, e não a fábula, quer que ele declare.

7. Este meio é vizinho daquele que declarei defeituoso, pois Orestes podia ter apresentado alguns sinais sobre si. O mesmo se diga da voz da lançadeira no Tereu de Sófocles.

8. A terceira espécie consiste na lembrança; por exemplo, a vista de um objeto evoca uma sensação anterior, como nos Ciprios de Diceógenes, onde a vista de um quadro arranca lágrimas a uma personagem; do mesmo modo, na narrativa feita a Alcino, Ulisses, ao ouvir o citarista, recorda-se e chora. Foi assim que os reconheceram.

9. Em quarto lugar, há o reconhecimento proveniente de um silogismo, como nas Coéforas(52): apresentou-se um desconhecido que se parece comigo, ora, ninguém se parece comigo senão Orestes, logo, quem veio foi Orestes. Idêntico é o reconhecimento inventado pelo sofista Políido(53), a propósito de Ifigênia, por ser verossímil que Orestes, sabendo que sua irmã tinha sido sacrificada, pensasse que também ele o seria. Outro exemplo é o de Tideu de Teodectes(54), o qual, tendo vindo com a esperança de salvar o filho, ele próprio foi morto. Outro exemplo, finalmente, aparece nas Fineidas(55), onde as mulheres ao verem o lugar em que chegaram, raciocinaram sobre a sorte que as aguardava: aquele fora o lugar pelo destino designado para morrerem, pois ali foram expostas.

10. O reconhecimento pode igualmente basear-se num paralogismo por parte dos espectadores, como se vê na peça Ulisses, falso mensageiro; a personagem acha-se capaz de reconhecer o arco, que na realidade não vira; a afirmação de que poderá reconhecer o arco é a base do paralogismo dos espectadores.

11. De todos estes meios de reconhecimento, o melhor é o que deriva dos próprios acontecimentos, pois o efeito de surpresa é então causado de maneira racional, por exemplo, no Édipo de Sófocles e na Ifigênia; pois é verossímil que Ifigênia quisesse entregar uma carta. Estas espécies de reconhecimento são as únicas que dispensam sinais imaginados e colares.

12. Em segundo lugar vêm todos os que estribam num raciocínio.

CAPÍTULO XVII
(Conselhos aos poetas sobre a composição das tragédias)


Quando o poeta organiza as fábulas e completa sua obra compondo a elocução das personagens, deve, na medida do possível, proceder como se ela decorresse diante de seus olhos, pois, vendo as coisas plenamente iluminadas, como se estivesse presente, encontrará o que convém, e não lhe escapará nenhum pormenor contrário ao efeito que pretende produzir.

2. A prova está nesta crítica feita a Cárnico(56): Anfiarau(57) saía do templo; escapou este pormenor ao poeta, porque não olhava a cena como espectador, mas foi o bastante para a peça cair no desagrado, pois os espectadores se indignaram.

3. Na medida do possível, é importante igualmente completar o efeito do que se diz pelas atitudes das personagens.

Em virtude da nossa natureza comum, são mais ouvidos os poetas que vivem as mesmas paixões de suas personagens; o que está mais violentamente agitado provoca nos outros a excitação, da mesma forma que suscita a ira aquele que melhor a sabe sentir.

4. Por isso a poesia exige ânimos bem dotados ou capazes de se entusiasmarem: os primeiros têm facilidade em moldar seus caracteres, não sentem dificuldade em se deixarem arrebatar.

5. Quanto aos assuntos, quer tenham sido já tratados por outros, quer o poeta os invente, convém que ele primeiro faça dos mesmos uma idéia global, e que em seguida distinga os episódios e os desenvolva.

6. Eis o que entendo por "fazer uma idéia global": por exemplo, a propósito de Ifigênia. Uma donzela, prestes a ser degolada durante um sacrifício, foi tirada dos sacrificadores, sem estes darem pelo fato; e transportada a outra região onde uma lei ordenava que os estrangeiros fossem imolados à deusa; e a donzela foi investida nesta função sacerdotal. Passado algum tempo, o irmão da sacerdotisa chega àquela região, e isto ocorre porque o oráculo do deus lhe prescrevera que se dirigisse àquele lugar, por motivo alheio à história e ao entrecho dramático da mesma. Chegando lá, ele é feito prisioneiro; mas quando ia ser sacrificado, deu-se a conhecer (quer como explica Eurípides, quer segundo a concepção de Políido, declarando naturalmente que não somente ele, mas também sua irmã devia ser oferecida em sacrifício) e com estas palavras se salvou.

7. Após isto, e uma vez atribuídos nomes às personagens,

8. Importa tratar os episódios, tendo o cuidado de bem os entrosar no assunto, como, no caso de Orestes, a crise de loucura, que provocou sua prisão, e o plano de purificá-lo, que causou sua salvação.

9. Nos poemas dramáticos os episódios são breves, mas baseando-se neles, a epopéia assume proporções maiores.

10. De fato, o assunto da Odisséia é de curtas dimensões. Um homem afastado de sua pátria pelo espaço de longos anos e vigiado de perto por Poseidon acaba por se encontrar sozinho; sucede, além disso, que em sua casa os bens vão sendo consumidos por pretendentes que ainda por cima armam ciladas ao filho deste herói; depois de acossado por muitas tempestades, ele regressa ao lar, dá-se a conhecer a algumas pessoas, ataca e mata os adversários e assim consegue salvar-se. Eis o essencial do assunto. Tudo o mais são episódios.

CAPÍTULO XVIII
(Nó, desenlace; tragédia e epopéia; o Coro)


Em todas as tragédias há o nó e o desenlace. O nó consiste muitas vezes em fatos alheios ao assunto e em alguns que lhe são inerentes; o que vem a seguir é o desenlace.

2. Dou o nome de nó à parte da tragédia que vai desde o início até o ponto a partir do qual se produz a mudança para uma sorte ditosa ou desditosa; e chamo desenlace a parte que vai desde o princípio desta mudança até o final da peça.

3. Por exemplo, no Linceu de Teodectes, o nó abarca todos os fatos iniciais, incluindo o rapto da criança e além disso... o desenlace vai desde a acusação de assassinato até o fim.

4. Há quatro espécies de tragédias, correspondentes ao número dos quatro elementos.

5. Uma complexa, constituída inteiramente pela peripécia e o reconhecimento...

6. A outra, a peça patética, do tipo de Ajax(58) e de Íxion(59);

7. a tragédia de caracteres, como Ftiótidas(60) e Peleu(61);

8. A quarta... como as Fórcidas e Prometeu e todas as que se passam no Hades.

9. Seria conveniente que os poetas se esforçassem ao máximo para possuir todos os méritos, ou pelo menos os mais importantes e a maior parte deles, atendendo principalmente as severas críticas de que são alvo em nossos dias; como houve poetas que se distinguiram neste ou naquele elemento essencial, exige-se de um só autor que supere seus próprios méritos em relação aos daqueles outros poetas.

10. É justo dizer que uma tragédia é semelhante a outra ou diferente dela, não só no argumento, mas também no nó e no desenlace.

11. Muitos tecem bem a intriga, mas saem-se mal no desenlace; no entanto, para ser aplaudido, é necessário conjugar os dois méritos.

12. Importa não esquecer o que muitas vezes tenho dito: não compor uma tragédia como se compõe uma obra épica; entendo por épica a que enfeixa muitas fábulas, por exemplo, como se alguém quisesse incluir numa tragédia todo o assunto da Ilíada.

13. A extensão inerente a este gênero de poema permite dar a cada parte as dimensões convenientes, sistema este que, na arte dramática, seria contra a expectativa.

14. A prova em que todos os que se propuseram a representar por inteiro a ruína de Tróia, e não apenas parcialmente, como fez Eurípedes, ou toda a história de Niobe, em vez de fazerem como Ésquilo, ou fracassam ou são mal colocados no concurso; falhou apenas por este motivo a peça de Agatão.

15. Mas nas peripécias e nas ações simples, os poetas alcançam maravilhosamente o fim que se propõe alcançar, a saber, a emoção trágica e os sentimentos de humanidade.

16. Assim acontece quando um homem hábil mas perverso é enganado como Sísifo, ou quando um homem corajoso mas injusto é derrotado.

17. Isto é verossímil, explica-nos Agatão, pois é verossímil que muitos acontecimentos se produzam, mesmo contra toda verossimilhança.

18. O coro deve ser considerado como um dos atores; deve constituir parte do todo e ser associado à ação, não como em Eurípedes, mas à maneira de Sófocles.

19. Na maioria dos poetas, os cantos corais referem-se tanto à tragédia, onde se encontram, como a qualquer outro gênero; por isso constituem uma espécie de interlúdio, cuja origem remonta a Agatão. Ora, existirá diferença entre cantar interlúdios e transferir de uma peça para outra um trecho ou um episódio completo?

CAPÍTULO XIX
(Do pensamento e da elocução)


Depois de termos falado sobre os outros elementos essenciais da tragédia, resta-nos tratar da elocução e do pensamento.

2. O que diz respeito ao pensamento tem seu lugar nos Tratados sobre retórica, pois este gênero de investigações é seu objeto próprio.

3. Tudo que se exprime pela linguagem é domínio do pensamento.

4. Disso fazem parte a demonstração, a refutação, e também a maneira de mover as paixões, tais como a compaixão e o temor, a cólera e as outras.

5. É evidente que devemos empregar estas mesmas formas, a propósito dos fatos, sempre que for necessário apresentá-los comoventes, temíveis, importantes ou verossímeis.

6. A diferença consiste no fato de certos efeitos deverem ser produzidos sem o recurso do aparato cênico, e outros deverem ser preparados por quem fala e produzidos conforme suas palavras. Pois qual seria a parte daqueles que têm à sua disposição a linguagem, se o prazer fosse experimentado sem a intervenção do discurso?

7. Entre as questões relativas à execução, uma há que se prende ao nosso exame: as atitudes a tomar no decurso da dicção; mas tal conhecimento depende da arte do comediante e dos que são mestres nessa arte. Trata-se de saber como se exprime uma ordem, uma súplica, uma narrativa, uma ameaça, uma interrogação, uma resposta, e outros casos deste gênero.

8. Com base no fato de o poeta conhecer ou ignorar estas questões, não se lhe pode fazer nenhuma crítica digna de consideração.

Quem consideraria como falta o que Protágoras censura, a saber, que o poeta, pensando endereçar uma súplica, na realidade dá uma ordem, quando exclama: "Canta, deusa, a cólera". Segundo inquire aquele crítico — exortar a fazer ou a não fazer, é dar uma ordem?

9. Ponhamos de lado esta questão, pois ela respeito não à poesia, mas a outra arte.

CAPÍTULO XX
(Da elocução e de suas partes)


Eis os elementos essenciais da elocução: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, artigo, flexão, expressão.

2. A letra é um som indivisível, embora não completo, mas de seu emprego numa combinação resulta naturalmente um som compreensível, pois os animais também fazem ouvir sons indivisíveis, mas a esses não dou o nome de letras.

3. As letras dividem-se em vogais, semivogais e mudas. É vogal a letra que produz um som perceptível, sem movimento da boca (para articular), como o "A" e "O "; a semivogal produz um som perceptível com a ajuda desses movimentos, o "S" e o "R"; a muda, que se produz com esses movimentos, não tem som por si mesma, mas torna-se audível juntando-se às letras sonoras; por exemplo, o "G" e o "D".

4. As diferenças entre estas letras provêm das modificações dos órgãos da boca, dos lugares onde se produzem, da presença ou ausência de aspiração, de sua duração maior ou menor, de seus acentos agudos, graves, intermediários; mas o estudo destas particularidades é do domínio da métrica.

5. A sílaba é um som sem significação, composto de uma muda e de uma letra provida de som, pois o grupo "GR" sem o "A" é uma sílaba, e também ajuntando-se o "A", como "GRA"; mas o estudo dessas diferenças compete igualmente aos metricistas.

6. A conjunção é uma palavra destituída de significado, que, sendo composta de vários sons, não tira nem confere a um termo seu poder significativo, e que se coloca nas extremidades ou no meio, se não convém lhe assinalar um lugar independente no começo de uma composição, por exemplo, meu, htoi,dh.

7. O artigo é um termo sem significação que designa o começo, o fim ou a divisão de uma preposição, por exemplo, to amji (em volta) e to peri (os arredores) e outros casos análogos, ou pode ser uma palavra vazia de sentido que não impede que se produza, com a ajuda de vários sons, uma expressão dotada de sentido, mas ele em si não produz esta expressão com sentido, e se coloca nas extremidades e no meio.

8. O nome é um som composto, significativo, sem indicação de tempo, e nenhuma de suas partes faz sentido por si mesma, pois, nos nomes formados de dois elementos, não empregamos cada elemento com um sentido próprio; por exemplo, em Teodoro, o elemento doro não apresenta significado.

9. O verbo é um som composto, significativo, que indica o tempo, e do qual nenhum elemento é significativo por si, tal como igualmente sucede nos nomes; com efeito, os termos "homem" e "branco" não dizem nada sobre o tempo, mas as formas "anda", "andou" indicam, a primeira, o tempo presente, a segunda, o tempo passado.

10. A flexão é uma modificação do nome e do verbo, que indica uma relação, como "deste" ou "a este", e outras relações análogas, o singular ou o plural, como "os homens", "o homem"; o estado de ânimo de uma personagem que interroga ou que manda: "Andou?" "Vá!"; estas últimas formas são flexões do verbo.

11. A locução (ou expressão) é um conjunto de sons significativos, algumas partes dos quais têm significação por si mesma,

12. pois nem todas as locuções são constituídas por verbos e nomes, por exemplo, na definição do homem, a locução pode existir sem verbo expresso. Deve ter, no entanto, sempre uma parte significativa; por exemplo, na proposição "Cleon anda", esta parte é o nome "Cleon".

13. A locução aparece una de duas maneiras: quando designa uma só coisa, ou quando oferece várias partes ligadas entre si. Assim, a Ilíada apresenta unidade por efeito da reunião de suas partes, e o termo "homem", porque designa apenas um ser(62).

CAPÍTULO XXI
(Das formas dos nomes; das figuras)


Eis as espécies de nomes: primeiramente o nome simples. Chamo simples o nome que não é composto de elementos significativos, por exemplo "terra";

2. nome duplo, é o composto ora de um elemento significativo e de outro vazio de sentido, ora de elementos todos significativos.

3. O nome pode ser formado de três, de quatro, e até mesmo de vários outros nomes, como muitos usados entre os marselheses, por exemplo Ermocaicoxanqoz.

4. Todo nome é termo próprio ou termo dialetal, ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, ou a palavra forjada, alongada, abreviada, modificada.

5. Entendo por termo próprio aquele de que cada um de nós se serve;

6. Por termo dialetal (ou glosa) aqueles de que se servem as pessoas de outra região, de sorte que o mesmo nome pode ser, manifestamente, próprio ou dialetal, mas não para as mesmas pessoas; assim sxgunon (lança) é termo próprio para os cipriotas e dialetal para nós.

7. A metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por analogia.

8. Quando digo do gênero para a espécie, é, por exemplo, "minha nau aqui se deteve", pois lançar ferro é uma maneira de "deter-se";

9. Da espécie ao gênero: "certamente Ulisses levou a feito milhares e milhares de belas ações", porque "milhares e milhares" está por "muitas", e a expressão é aqui empregada em lugar de "muitas";

10. Da espécie para a espécie: "tendo-lhe esgotado a vida com o bronze" e "de cinco fontes cortando com o duro bronze"; aqui, "esgotar" eqüivale a "cortar" e "cortar" eqüivale a "esgotar"; são duas maneiras de tirar.

11. Digo haver analogia quando o segundo termo está para o primeiro, na proporção em que o quarto está para o terceiro, pois, neste caso, empregar-se-á o quarto em vez do segundo e o segundo em lugar do quarto.

12. Às vezes também se acrescenta o termo ao qual se refere a palavra substituída pela metáfora. Se disser que a taça é para Dionísio assim como o escudo é para Ares, chamar-se–á taça o escudo de Dionísio e ao escudo, a taça de Ares.

13. O que a velhice é para a vida, a tarde é para o dia. Diremos pois que a tarde é a velhice do dia, e a velhice é a tarde da vida, ou, com Empédocles, o ocaso da vida. Em alguns casos de analogia não existe o termo correspondente ao primeiro;

14. porém mesmo assim nada impede que se empregue a metáfora. O ato de "lançar a semente à terra" chama-se "semear"; mas não existe termo próprio para designar o ato de o sol deixar cair sobre nós sua luz; contudo existe a mesma relação entre este ato e a luz, que entre semear e a semente; pelo que se diz: "semeando uma luz divina".

15. Há outra maneira de empregar este gênero de metáfora, dando a uma coisa um nome que pertence a outra e negando uma das propriedades desta, como se, por exemplo, se denominasse o escudo, não a taça de Ares, mas a taça sem vinho.

16. O nome forjado é o que não foi empregado neste sentido por ninguém, mas que o poeta, por sua própria autoridade, atribui a uma coisa. Parece haver algumas palavras deste gênero, tais como "rebentos" para designar "cornos" e arhthra – "o que dirige súplicas" –por sacerdote.

17. (Desapareceu do texto original.)

18. O nome é alongado ou abreviado; no primeiro caso, pelo emprego de uma vogal mais longa que a habitual ou pela adjunção de uma sílaba; no segundo caso, se nele se faz uma supressão.

19. Alongado é, por exemplo, polhox em vez de polevx, e phlhiadev em vez de phleidou; são abreviados cri (por crioh = "cevada'), dv (por dwma="casa") e dy (por dyiz="vista") em "uma só imagem provém dos dois olhos".

20. Há modificação do nome se, no termo usado, conserva-se uma parte e muda-se a outra, como em dexiteron cata mczon (contra o mamilo direito) em vez de dexion.

21. Em si mesmos, os nomes são uns masculinos, outros femininos, outros neutros;

22. São masculinos os que terminam em N, R, S ou em letras compostas de S (que são as consoantes duplas Y e X);

23. São femininos os que terminam em vogal sempre longa, como H e W ou em A alongado;

24. daí resulta o mesmo número de finais para os masculinos e os femininos, pois Y e X são as mesmas que S.

25. Nenhum nome termina em muda ou em vogal breve.

26. Em I terminam apenas três nomes: meli (mel), commi (goma), peperi (pimenta); em G terminam cinco: pvu (rebanho), napu (mostarda), gonu (joelho), doru (lança), aotu (cidade). Os neutros terminam por estas mesmas letras e por N e S.

CAPÍTULO XXII
(Das qualidades da elocução)


A qualidade principal da elocução poética consiste na clareza, mas sem trivialidades.

2. Obtém-se a clareza máxima pelo emprego das palavras da linguagem corrente, mas à custa da elevação. Exemplo deste último estilo é a poesia de Cleofonte e de Esténelo.

3. A elocução mantém-se nobre e evita a vulgaridade, usando vocábulos peregrinos (chamo peregrinos os termos dialetais), a metáfora, os alongamentos, em suma tudo o que se afasta da linguagem corrente.

4. Se, porém, o estilo comportar apenas palavras deste gênero, torna-se enigmático ou bárbaro; enigmático, pelo abuso de metáforas; bárbaro, pelo uso de termos dialetais.

5. Uma forma de enigma consiste em exprimir uma coisa qualquer numa seqüência de termos absurdos. Isso não é possível de atingir reunindo os vocábulos por eles mesmos, mas só através da metáfora, por exemplo: "vi um homem que, com fogo, colava bronze noutro homem" e outras expressões semelhantes.

6. O uso de termos dialetais faz da língua algo estranho, porém ainda inteligível. Importa, pois, praticar de algum modo a mistura de termos.

A vulgaridade e a trivialidade serão evitadas por meio do termo dialetal, da metáfora, do vocábulo ornamental e das demais formas anteriormente indicadas; mas o termo próprio é o que dá clareza ao discurso.

8. O meio de contribuir em larga escala para a clareza, evitando a vulgaridade, são os alongamentos, as apócopes e as modificações introduzidas nas palavras; pelo fato de mudar a fisionomia dos termos correntes e de sair da rotina, evita-se a banalidade, mas a clareza subsistirá na medida em que as palavras participarem dessa rotina.

9. Por isso, os que censuram este gênero de estilo e põem o poeta em ridículo, são criticados sem razão. Assim, Euclides, o Antigo, pretendia ser fácil escrever em verso, desde que fosse permitido alongar as sílabas à vontade, e à maneira de paródia citava este verso em estilo vulgar:
Quando vi Ares marchando para Maratona
[ bazein é um termo da linguagem em prosa, no qual ba (breve) alonga-se em ba (longa) ] e este outro:
Ele que não teria gostado do seu heléboro

10. Claro que, se o poeta utiliza este processo, cai no ridículo, pois é necessário conservar o meio termo em todas as partes da elocução.

11. De fato, servir-se com exagero de metáforas, de termos dialetais, de formas análogas, é o mesmo que provocar o riso de propósito.

12. Quão diferente é o emprego moderado dos dois termos, pode se verificar nos versos épicos, introduzindo no metro vocábulos da prosa.

13. Se, em vez destes vocábulos estranhos, das metáforas e de outras figuras de palavras, usarmos palavras correntes, ver-se-á que dizemos a verdade. Por exemplo, num verso iâmbico composto por Ésquilo, Eurípides não fez mais do que mudar uma só palavra (ou seja, no lugar do termo usual, empregou uma glosa); foi o bastante para que um dos dois versos parecesse belo, e o outro vulgar. Com efeito, Ésquilo no Filocteto escrevera:
A úlcera que come as carnes de seu pé,
e Eurípedes substituiu o verbo "come" pelo verbo "banqueteia-se".
Se no verso:
Agora ele é pouco considerável, impotente e sem vigor,
alguém quisesse empregar os termos próprios, teríamos:
E agora ele é pequeno, fraco e disforme.
Ou:
Depois de ter trazido um miserável assento e uma simples mesa,
seria possível escrever:
Depois de ter trazido uma cadeira reles e uma pequena mesa;
e, em lugar da expressão: "a praia muge", teríamos "a praia emite um grito". Arífrades(63), em suas comédias, zombava dos autores de tragédias, por utilizarem termos que ninguém emprega na conversação, dizendo, por exemplo, "das casas longe", em lugar de "longe das casas", e seqen e egv de nin e "de Aquiles a respeito" em vez de "a respeito de Aquiles", e expressões idênticas.

15. Estas maneiras de se exprimir, justamente por não serem habituais, comunicam à elocução aspecto isento de vulgaridade. Mas Arífrades não dava por isso.

16. É importante saber empregar a propósito cada uma das expressões por nós assinaladas, nomes duplos e glosas; maior todavia é a importância do estilo metafórico.

17. Isto só, e qual não é possível tomar de outrem, constitui a característica dum rico engenho, pois descobrir metáforas apropriadas eqüivale a ser capaz de perceber as relações.

18. Entre os nomes, os duplos convêm sobretudo aos ditirambos, as glosas, a poesia heróica, as metáforas, os versos iâmbicos.

19. Na poesia heróica devem empregar-se todas as expressões indicadas; nos versos iâmbicos, como neles principalmente se procura a imitação da linguagem corrente, convêm os nomes de que nos servimos geralmente na conversação, isto é, o nome usual, a metáfora e o vocábulo ornamental.

20. Deve bastar quanto dissemos sobre a tragédia e imitação por meio da arte dramática.

CAPÍTULO XXIII
(Da unidade de ação na composição épica)


Na imitação em verso pelo gênero narrativo, é necessário que as fábulas sejam compostas num espírito dramático, como as tragédias, ou seja, que encerrem uma só ação, inteira e completa, com princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a um organismo vivente, causem o prazer que lhes é próprio. Isto é óbvio.

2. A combinação dos elementos não se deve operar como nas histórias, nas quais é obrigatório mostrar, não uma ação única, referindo todos os acontecimentos que nesse tempo aconteceram a um ou mais homens, e cada um dos quais só está em relação fortuita com os restantes.

3. Assim como foram travados simultaneamente o combate naval de Salamina e, na Sicília, a batalha dos cartagineses (em Himera), sem que nenhuma destas ações tendesse para o mesmo fim; assim nos acontecimentos consecutivos, um fato sucede a outro, sem que entre eles haja comunidade de fim(64).

4. É este o processo adotado pela maioria dos poetas.

5. Por este motivo, como dissemos, Homero, comparado com os demais poetas, nos parece admirável, pois evitou contar por inteiro a guerra de Tróia, se bem que ela tenha começo e fim. Semelhante argumento correria o risco de ser demasiado vasto e difícil de abarcar num relance; ou então, se a tivesse reduzido a uma extensão razoável, ela teria sido demasiado complicada por tão grande variedade de incidentes. Limitou-se a tratar de uma parte da guerra e inseriu muitos outros fatos por meio de episódios, como por exemplo o catálogo das naus e outros trechos que de espaço a espaço dispõe no poema.

6. Os outros poetas, pelo contrário, tomam um só herói em um único período, mas sobrecarregam esta única ação de muitas partes, como faz, por exemplo, o autor dos Cantos Cíprios e da Pequena Ilíada.

7. Por esta razão, enquanto de cada um dos poemas da Ilíada e da Odisséia não há possibilidade de extrair senão um ou dois argumentos da tragédia, grande número de argumentos se pode tirar dos Cantos Cíprios e oito, pelo menos, da Pequena Ilíada, a saber: O Juízo das armas, Filocteto, Neoptólemo, Eurípilo, O Mendigo, Lacedemônicas, Saque de Tróia, Partida das naus, Sínon e As troianas(65).

CAPÍTULO XXIV
(Das partes da epopéia; méritos de Homero)


A epopéia deve apresentar ainda as mesmas espécies que a tragédia: deve ser simples ou complexa, ou de caráter, ou patética.

2. Os elementos essenciais são os mesmo, salvo o canto e a encenação; também são necessários os reconhecimentos, as peripécias e os acontecimentos patéticos. Deve, além disso, apresentar pensamentos e beleza da linguagem.

3. Todos estes méritos, o primeiro que os teve disponíveis e os empregou de modo conveniente foi Homero. Cada um dos dois poemas é composto de tal maneira que a Ilíada é simples e patética, e a Odisséia oferece uma obra complexa (onde abundam os reconhecimentos), e um estudo dos caracteres. Além disso, em estilo e pensamento, seu autor supera os demais poetas.

4. Mas a epopéia é diferente da tragédia em sua constituição pelo emprego e dimensões do metro.

5. Quanto à extensão, indicamos o limite exato: é preciso que o seu conjunto possa ser abarcado do princípio ao fim. Isso aconteceria, se as composições épicas fossem menos longas que as dos antigos e se estivessem em relação com o total das tragédias representadas numa só audição.

6. A epopéia goza de vantagem peculiar no concernente a sua extensão: enquanto na tragédia não é possível imitar, no mesmo momento, as diversas partes simultâneas de uma ação, exceto a que está sendo representada em cena pelos atores; na epopéia, que se apresenta em forma de narrativa, é possível mostrar em conjunto vários acontecimentos simultâneos, os quais, se estiverem bem relacionados ao tema central, o tornam mais grandioso.

7. Daí resultam várias vantagens, como engrandecer a obra, permitir aos ouvintes transportarem-se a diversos lugares, introduzir variedade por meio de episódios diversos; pois a uniformidade não tarda em gerar a saciedade, causa do fracasso das tragédias.

8. A experiência provou que a medida mais conveniente à epopéia é o metro heróico. Com efeito, se, para fazer uma imitação em forma narrativa, se empregasse metro diferente, ou variado, saltaria aos olhos a inconveniência,

9. Visto ser o metro heróico, de todos o que possui maior gravidade e amplidão, sendo por isso o mais apto a acolher glosas e metáforas, e também neste particular a imitação pela narrativa é superior às outras.

10. O iambo e o tetrâmetro são metros de movimento, feitos um para a dança e o outro para a ação.

11. O resultado seria de todo extravagante, se se combinassem estes metros, como fez Querémon.

12. Por este motivo, jamais alguém escreveu um poema extenso que não fosse em verso heróico; e como dissemos, a própria natureza do assunto nos ensina a escolher o metro conveniente.

CAPÍTULO XXV
(Como se deve apresentar o que é falso)


Sem dúvida, Homero é por muitas razões digno de elogio; e a principal delas é o fato dele ser, entre os poetas, o único que faz as coisas como elas devem ser feitas.

2. O poeta deve dialogar com o leitor o menos possível, pois não é procedendo assim que ele é imitador. Os poetas que não Homero, pelo contrário, ao longo do poema procedem como atores em cena, imitam pouco e raramente; ao passo que Homero, após curto preâmbulo, introduz imediatamente um homem, uma mulher ou outro personagem, e nenhum carece de caráter, e de cada um são estudados os costumes.

3. Nas tragédias, é necessária a presença do maravilhoso, mas na epopéia pode-se ir além e avançar até o irracional, através do qual se obtém este maravilhoso no grau mais elevado, porque na epopéia nossos olhos não contemplam espetáculo algum.

4. A perseguição de Heitor, levada à cena, mostrar-se-ia inteiramente ridícula: "uns imóveis e que não perseguem, e o outro (Aquiles) que lhes acena com a cabeça negativamente". Numa narrativa, esses detalhes estranhos passam desapercebidos.

5. Ora, o maravilhoso agrada, e a prova está em que todos quantos narram alguma coisa acrescentam pormenores imaginários, com intuito de agradar.

6. Homero foi também quem ensinou os outros poetas como convém apresentar as coisas falsas. Refiro-me ao paralogismo. Eis como os homens pensam: quando uma coisa é, e outra coisa também é, ou, produzindo-se tal fato, tal outro igualmente se produz, se o segundo é real, o primeiro também é real, ou se torna real. Ora, isto é falso. Daí se imagina que, se o antecedente é falso, mas mesmo assim a coisa existe ou vem a se produzir, estabelece-se uma ligação entre antecedente e conseqüente: sabendo que o segundo caso é verdadeiro, nosso espírito tira a conclusão falsa de que o primeiro também o seja. Disso temos exemplo no episódio do Banho.

7. É preferível escolher o impossível verossímil do que o possível incrível,

8. E os assuntos poéticos não devem ser constituídos de elementos irracionais, neles não deve entrar nada de contrário à razão, salvo se for alheio à peça, como no caso de Édipo ignorante das circunstâncias da morte de Laio; e nunca dentro do próprio drama, como na Electra, onde se fala nos Jogos Píticos(66) e nos Mísios, onde um personagem vem de Tegéia até Mísia, sem proferir palavra.

9. Seria ridículo pretender que a fábula não se sustentaria sem isso. Antes de mais nada, não se deveriam compor fábulas desse gênero; mas, se há poetas que as fazem e de maneira que pareçam ser razoáveis, pode-se introduzir nelas o absurdo, pois o passo inverossímil da Odisséia, que trata do desembarque (de Ulisses pelos feaces), não seria tolerável, se fosse redigido por um mau poeta. Mas, em nosso caso, o poeta dispõe de outros méritos que lhe possibilitam mascarar o absurdo por meio de subterfúgios.

11. Quanto à elocução, deve ser muito acurada só nas partes de ação com menos movimento, que não ostentam nem estudos de caracteres, nem pensamentos; um estilo demasiado fulgurante, exibido em toda a peça, deixaria na sombra os caracteres e o pensamento.

CAPÍTULO XXVI
(Algumas respostas às críticas feitas à poesia)


Sobre os pontos de controvérsia e as soluções para eles, sobre o número e as diferentes espécies de controvérsia, alguma luz derramarão as considerações em seguida:

2. Sendo o poeta um imitador, como o é o pintor ou qualquer outro criador de figuras, perante as coisas será induzido a assumir uma dessas três maneiras de as imitar: como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou dizem que parecem ser, ou como deveriam ser.

3. O poeta exprime essas maneiras diversas por meio da elocução, que comporta a glosa, a metáfora e muitas outras modificações dos termos, como as admitimos nos poetas.

4. Acrescentemos que não se aplica o mesmo critério rigoroso da política à poesia, nem às outras artes em relação à poesia.

5. Em arte poética, são duas as ocasiões de cometer faltas: umas referentes à própria estrutura da poesia; outras, acidentais.

6. Se o poeta se propõe imitar o impossível, a falta é dele. Mas se o erro provém de uma escolha mal feita, se ele representou um cavalo movendo ao mesmo tempo as duas patas do lado direito, ou se a falta se refere a algum conhecimento particular como a medicina ou qualquer outra ciência, ou se de qualquer modo ele admitiu a existência de coisas impossíveis, então o erro não é intrínseco à própria poesia.

7. É com este critério que convém responder às críticas relativas aos poetas controversos. Examinemos primeiro o que diz respeito à própria arte: se o poema contém impossibilidades, há falta;

8. no entanto, isto nada quer dizer, se o fim próprio da arte foi alcançado (fim que já foi indicado) e se, desse modo, esta ou aquela parte da obra redundou mais impressionante, como, por exemplo, a perseguição de Heitor.

9. Contudo se o fim podia ser melhor alcançado, respeitando a verdade, a falta é indesculpável, pois tanto quanto possível dever-se-ia evitar qualquer falta.

10.Mas sobre qual destes dois pontos recai a falta: a própria arte ou uma causa estranha acidental? A falta é menos grave, se o poeta ignorava que a corça não tem cornos, do que quando ela não foi representada de acordo com sua figura.

11. Se, além disso, a ausência de verdade é criticada, é possível responder que o autor representou as coisas como elas devem ser, a exemplo de Sófocles, que dizia ter pintado os homens tais quais são.

12. Além destas duas espécies de explicação podemos ainda responder pela opinião comum, tal como ela se exprime acerca dos deuses.

13. Pois é possível que esta opinião sobre os deuses não seja boa nem exata, e que seja verdadeira a opinião de Xenófanes(67): "mas a multidão pensa de modo diferente".

14. Talvez também as coisas não sejam representadas da melhor maneira (para a atualidade), mas como eram outrora; por exemplo, quando (o poeta diz) a respeito das armas: "que suas lanças estavam plantadas eretas como o ferro para o alto"; era esse o uso outrora, como é ainda hoje entre os ilírios.

15. Para saber se uma personagem falou e agiu bem ou mal, não devemos nos limitar ao exame da ação executada ou da palavra proferida, para saber se elas são boas ou más; é preciso ter em conta a pessoa que fala ou age, saber a quem se dirige, quando, por que e para que, se para produzir maior bem ou para evitar maior mal.

16. No exame do estilo importa refutar certas críticas, por exemplo, a referente ao uso da glosa (termo dialetal): em ourhaz men prvton "primeiro os machos", não devemos interpretar "os machos", mas "as sentinelas". De igual modo, a propósito de Dólon — ele era de aspecto disforme — deve entender-se que ele não tinha um corpo desproporcionado, mas apenas um rosto feio, pois os cretenses exprimem por — de belo aspecto — a beleza do rosto. E nesta expressão: zvroteron de ceraie, não se trata de servir o vinho "sem mistura", como se fosse para os bêbados, mas sim de misturar mais depressa.

17. O poeta pôde falar por metáforas, como por exemplo em: "Todos os outros, deuses e guerreiros, dormiam a noite inteira"; e logo a seguir diz: "quando olhava para a planície de Tróia... o ruído das flautas e das siringes". Seguramente, "todos" está em lugar de "muitos" por metáfora, pois o termo "todo" contém a idéia de "muito". Também: "a única que não se deita", deve-se entender por metáfora, pois o mais conhecido é o que está só.

18. Pode tratar-se da acentuação.(...)

19. Outras vezes pela diérese, como nos versos de Empédocles: "Depressa se tornou mortal, o que antes tomara o hábito de ser imortal, e as coisas antes puras tornaram-se mescladas".

20. Outras vezes por anfibologia: "as estrelas percorreram boa parte de seu curso; já passaram mais de dois terços da noite; falta apenas o último", pois o termo plevn(68) tem sentido duplo;

21. Outras vezes trata-se de certa maneira de falar. Por exemplo, ao vinho misturado com água dá-se o nome genérico de "vinho"; daí se pôde dizer que Ganimedes serve esta bebida a Zeus, embora os deuses não bebam vinho. Os operários que na realidade trabalham o ferro, denominam-se "trabalhadores de bronze"; daí dizer-se "cnêmide de estanho novamente fabricada". Todas estas expressões podem resultar de metáfora.

22. Quando um termo parece provocar uma contradição, importa examinar quantas interpretações ele pode tomar no passo em questão, como, por exemplo, em "a lança de bronze aqui se deteve",

23. seria conveniente verificar de quantas maneiras se pode admitir que a lança tenha se detido. Será esta a melhor maneira de compreender, inteiramente oposta ao método de que fala Glauco,

24. a saber: alguns, sem boas razões, formam idéias preconcebidas, depois põem-se a raciocinar e a decidir pela condenação do que se lhes afigura ter sido dito no poema, sempre que vier de encontro à opinião deles.

25. Foi o que sucedeu a propósito de Icário. Pensa-se que ele foi lacedemônio. Parece portanto absurdo que Telêmaco não o tenha encontrado quando foi à Lacedemônia; mas talvez as coisas se tenham passado de modo diferente, a acreditarmos nos cefalênios. Dizem estes que Ulisses foi à terra deles casar-se, e que se trata de Icádio e não de Icário. É provável que o problema seja proveniente de um equívoco.

26. Em suma, devemos atribuir a presença do impossível à própria poesia, ou ao melhor para a situação, ou à opinião corrente.

27. No que diz respeito à poesia, deve-se preferir o impossível crível ao possível incrível. E talvez seja impossível que os homens sejam tais como os pinta Zêuxis;

28. mas ele os pinta melhores porque o paradigma deve ser de valor superior ao que existe; quanto às coisas irracionais referidas pela opinião, temos de admiti-las tais como são propaladas e

29. mostrar que por vezes não são ilógicas, pois é verossímil que aconteçam coisas na aparência inverossímeis.

30. Quanto às contradições, conforme foi dito, é necessário examiná-las, como se faz com as provas colocadas nos processos, ver se a afirmação refere-se ao mesmo caso e às mesmas coisas e da mesma maneira, se o poeta falou, ele próprio, e por que motivo, e o que pensaria sobre o assunto um homem sensato.

31. Entretanto a crítica tem fundamento, quando se trata do absurdo e da perversidade pura, não havendo então necessidade de se recorrer ao irracional, como fez Eurípedes a propósito de Egeu, ou à maldade de Menelau na peça Orestes.

32. As críticas referem-se a cinco pontos: o impossível, o irracional, o prejudicial, o contraditório, o contrário às regras da arte. As refutações devem ser buscadas nos casos enumerados, e são doze.

CAPÍTULO XXVII
(Superioridade da tragédia sobre a epopéia)


Poder-se-ia perguntar qual das duas é superior à outra, se a imitação épica ou a trágica.

2.Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria por conseguinte a mais vulgar.

3. Os atores em cena, julgando que o público seria incapaz de sentir caso eles não acrescentassem a interpretação ao texto escrito, às vezes multiplicam os movimentos, semelhando os maus tocadores de flauta que rebolam a fim de imitar o lançamento do disco, ou que arrastam o corifeu, quando acompanham com seu instrumento a representação do Cila.

4. As críticas que os antigos atores dirigem a seus sucessores, deveriam aplicar-se à tragédia. Assim, Minisco tratava Calípides de macaco, por causa da gesticulação forçada demais. O mesmo se dizia de Píndaro. Estes últimos são, assim, em relação aos primeiros, o que toda a arte trágica é em relação à epopéia.

5. Esta, segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal, manifestamente é de qualidade inferior.

6. Em primeiro lugar, esta crítica não vai endereçada contra a arte do poeta, mas sim contra a do ator, pois que até o rapsodo pode levar a imitação ao ponto de se servir de gestos, como fazia Sosístrato, ou mesmo entremeá-la com o canto, como Mnasíteo de Oponte.

7. Em seguida, não devemos condenar toda gesticulação, nem toda dança, mas só a dos maus executantes, como era censurado Calípides e em nossos dias o são alguns outros, por imitarem mulheres de condição servil.

8. Acresce que a tragédia, mesmo não acompanhada da movimentação dos atores, produz seu efeito próprio, tal como a epopéia, pois sua qualidade pode ser avaliada apenas pela leitura. Portanto, se ela é superior em tudo o mais, não é necessário que o seja neste particular.

9. Em seguida, ela contém todos os elementos da epopéia;

10. com efeito, a tragédia pode utilizar o metro desta última, e, além disso — o que não é de pouca importância — dispõe da música e do espetáculo, que concorrem para gerar aquele prazer mais intenso que lhe é peculiar.

11. Além disso, sua clareza permanece intata, tanto na leitura quanto na representação.

12. E mais: com extensão menor que a da epopéia, mesmo assim ela atinge seu objetivo, que é imitar; ora, o que é mais concentrado proporciona maior prazer do que o diluído por longo espaço de tempo – pensemos no que seria o Édipo tratado no mesmo número de versos que a Ilíada!

13. Além do mais, a imitação em qualquer epopéia apresenta menor unidade que na tragédia. A prova é que, de qualquer imitação épica se extraem vários argumentos de tragédia, de modo que, se o poeta em sua epopéia trata uma só fábula, ela será exposta de modo forçosamente breve, e resultará bem mesquinha, ou então, conformando-se às dimensões habituais do gênero, resultará prolixa. Mas se trata muitas fábulas, ou seja, se a obra é constituída por muitas ações, carece de unidade.

14. Por exemplo, a Ilíada comporta muitas partes deste gênero, bem como a Odisséia, partes que em si são extensas, e no entanto estes poemas formam um todo da maneira mais perfeita e constituem, no mais alto grau, a imitação de uma arte única.

15. Portanto, se a tragédia se distingue por todas estas vantagens e mais pela eficácia de sua arte (ela deve proporcionar, não um prazer qualquer, mas o que é por nós indicado), é evidente que, realizando melhor sua finalidade, ela é superior à epopéia.

16. Falamos sobre a tragédia e sobre a epopéia, sobre a natureza e espécie das mesmas, sobre seus elementos essenciais, número e diferença dos mesmos, sobre as causas que as tornam boas ou más, enfim sobre as críticas e os efeitos que provocam.

NOTAS

1. Sófron de Siracusa (primeira metade do século V) criou o gênero que se chamava mímica, no qual se tentava apresentar uma imitaçãp perfeita da vida.

2. Xenarco era poeta cômico. Não se conhece em que época viveu.

3. Empédocles de Agrigento foi um filósofo do século V.

4. Querémon foi poeta trágico. Viveu no século IV A.C. Diz-se dele que era conhecido como poeta cômico porque introduziu cenas engraçadas em suas peças. Alguns fragmentos de tragédias escritas por Querémon chegaram até nós, entre eles: Aquiles, Tersites, Dioniso, Tiestes, Ulisses, Centauros. Parece que, assim como Homero, cantava os heróis da Guerra de Tróia – a julgar pelos títulos das peças. Na Arte Retórica, Aristóteles o elogia por ser bom logógrafo, e fala do prazer que se sentia ao ler suas peças.

5. Ditirambo era poesia coral para honrar Dionísio. Segundo o dicionário Aurélio: [Do gr. dithyrambos, pelo lat. dithyrambu] S.m. 1. Teat. e Mús. Nas origens do teatro grego, canto coral de caráter apaixonado (alegre ou sombrio), constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, ou corifeu, e de outra propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados companheiros do deus Dionísio, em honra do qual se prestava essa homenagem ritualística. 2. P. ext. Composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio. ................... Parece que Árion (séc. VII A.C.) compôs os primeiros ditirambos para o teatro. Segundo Aristóteles, o ditirambo (coro cíclico acompanhado pela dança, mímica apaixonada, música de flautas, talvez uma narrativa épica) deu origem à tragédia ática, quando Árion organizou o verdadeiro carnaval das comemorações dionisíacas, introduzindo um coro cíclico de cinqüenta personagens, que dançava e, decerto, fazia uma narrativa em celebração ao deus. Os primeiros ditirambos foram transplantados da Ásia Menor para a Grécia. A raiz da palavra Dionísio é trácia: nisos — filho. Infere-se que o ditirambo deve ter penetrado na Grécia acompanhando o culto desse deus.

6. Terpandro, poeta lírico dórico— originário duma ilha de Lesbos chamada Antissa— (talvez primeira metade do século VII A.C.), foi autor de composições musicais em que o canto era acompanhado por cítara. Era um tipo de canto religioso hierático, escrito em hexâmetros dactílicos, que se chamava nomo. Diz-se que esta foi a primeira associação feita entre a poesia e a música.

7. Polignoto de Tasos (séc. V A.C.), foi pintor ateniense afamado. Pintou "O saque de Tróia" no pórtico (Lesque) Cnídio de Delfos, decorou o Pécile de Atenas.

8. Páuson foi contemporâneo de Aristófanes, que zombou do primeiro na Acarnenses.

9. Dionísio de Colofônia. A história grega registra bastante informação a seu respeito.

10. Cleofonte de Atenas (séc. V. A.C.) foi poeta trágico.

11. Hegémon de Tasso era poeta cômico, especialista em paródias. Viveu no século V A.C.

12. Nicócares foi poeta cômico. Viveu no século IV A.C.

13. Timóteo de Mileto foi poeta lírico e músico. Sabe-se que nasceu em 446 A.C., falecendo em 356 A.C. Era cortesão na Macedônia, pertencendo ao séquito do rei Arquelau. Chegaram até nós alguns fragmentos de suas obras.

14. Filóxeno de Citera foi autor dramático e lírico (439 A.C. a 380 A.C.). Fixou-se em Siracuso, na corte de Dionísio. O Velho.

15. Sófocles era de Colono, um demo da Ática. Nasceu em 495 A.C., morreu em 406 A.C. De todo o seu trabalho, chegaram até nós sete tragédias e fragmentos de várias outras, além de fragmentos de um drama satírico.

16. Aristófanes de Atenas, foi poeta cômico. Escreveu 44 comédias, das quais conhecemos 11 apenas, efragmentos de algumas outras. Viveu entre 427 A.C. e 388 A.C.

17. Epicarmo da Sicília, filósofo e poeta cômico, viveu em fins do século VI A.C. e na primeira metade do século V A.C. Segundo a tradição, o inventor da comédia foi Susarião (século VI A.C.), de Mégara. Entretanto Aristóteles considera que Formis de Siracusa e Epicarmo foram os criadores da comédia.

18. Crônidas de Atenas foi poeta cômico (séc. V A.C.), foi quem deu forma artística ao turanismo de Mégara.

19. Magnete de Icária, poeta cômico que viveu em cerca de 400 A.C. Diz-se que foi o primeiro a receber um prêmio com uma comédia.

20. Margites ou Louco enfatuado de si mesmo, poema satírico que Aristóteles atribui a Homero, perdeu-se. Aristóteles vê nele a origem da comédia, e na Ilíada e na Odisséia a origem da tragédia.

21. Os cantos fálicos eram farsas mimadas, bastante indecentes, celebradas em cidades como Sicíone. Eram executados por cantores chamados falóforos, aos gritos de que sua cantoria não era para as virgens.

22. O arconte-rei era o máximo pontífice religioso. Ficava a seu encargo a organização das representações dramáticas, pois eram um culto público a Dionísio. O arconte escolhia três poetas, dentre todos os concorrentes, para terem suas obras representadas. O coro era concessão do arconte, e ao ser autorizado significava uma espécie de aval para encenar o espetáculo, à custa de um cidadão designado para servir de corego.

23. Epicarmo era de Cós. Viveu entre 540 A.C. e 452 A.C. Sua infância e juventude, passou-as em Mégara, na Sicília, que era colônia dória. Quandose tornou poeta, foi viver sob a proteção de Gelão e de Hierão I, tiranos irmãos que admiravam e protegiam os artistas. Epicarmo gostava de criticar os costumes bárbaros do povo siciliano e sua tendência para a gula, e seu objetivo como escritor era claramente moralizante.

24. Assim como Epicarmo, também Fórmis (séc. V A.C.) viveu nas cortes de Gelão e Hierão I. Suidas (séc. X D.C.) afirma serem dele algumas tragédias, cujos títulos cita. Aristóteles considera Fórmis um dos criadores da comédia.

25. Crates de Atenas (sabe-se que faleceu em 424 A.C.), era especialista em criação de tipos característicos, como o Ébrio.

26. Melopéia era a parte da arte musical que se referia à composição melódica, subordinando a música à poesia. Pouco chegou até nós, referente à melopéia. Era uma seqüência de sons musicias dispostos de forma a provocar uma emoção estética harmoniosa, tornando-se, por isso, agradável.

27. Zêuxis de Ericléia viveu em Atenas no final do século V. A.C. Pintava figuras de crianças e mulheres mitológicas.

28. Apenas alguns fragmentos e nomes de personagens chegaram até nós destes poemas cíclicos. Eram conhecidos entre os séculos VII A.C. e V A.C.. Os personagens principais eram Heracles, herói dório, e Teseu, o herói ateniense. Eram coletâneas de poemas, escritas por vários poetas conhecidos, entre os quais sabe-se que estavam incluídos Pisandro de Rodes (séc. VII A.C.), Paníase de Samos (séc. V. A.C.), Baquídiles de Ceos (sécs. VI A.C. e V A.C.)

29. Esse ponto é bastante discutido, porque a Odisséia contém a parte em que Ulisses é ferido na perna por um javali, no monte Parnaso, sendo posteriormente reconhecido por sua ama Euricléia, que o identifica justo ao observar a ferida. Por alguma razão— esquecimento, ou porque a edição de que dispunha não trazia esta cena—, Aristóteles diz que ela não fora mencionada por Homero. Assim também, quanto à loucura fingida por Ulisses, que Aristóteles menciona também não estar presente na Odisséia, a informação é errônea.

30. Refere-se a Herodoto de Helicarnasso, hostoriador das guerras médias (séc. V A.C.).

31. Alcibíades (séc. V. A.C.), ficou famoso por ser belo e leviano, causando sérios problemas à sua pátria.

32. A tragédia de Agatão perdeu-se. O autor foi poeta de renome, pois obteve a vitória de 416 A.C. com sua primeira peça. Agatão fez críticas ao estilo usado por Agatão nas Tesmofórias. Parece que Platão não gostava do poeta, pois ele aparece no Banquete fazendo um discurso medíocre.

33. Uma das oito tragédias de Sófocles que não chegaram até nós.

34. Tragédia de Teodectes de Fasélis (sec. IV A.C). Linceu era um dos filhos de Egito. Casado com Hipermnestra, sua prima, uma das cinqüenta danaides, foi poupado pela esposa, quando o pai delas mandou que todas as suas filhas matassem os homens com quem tinham casado. Linceu foi sucessor de seu tio e sogro Dânao, morto pelos argivos em lugar do próprio Linceu.

35. Aristóteles refere-se à Electra de Sófocles. Na peça, Electra já é conhecida por Orestes, antes de o reconhecer.

36. Trata-se da Ifigênia em Tauris, peça de Eurípides representada em 410 A.C.

37. Commoz: lamentação, ação de bater no peito; diálogo lírico entre o coro e alguns personagens em cena, às vezes em versos líricos, outras em versos iâmbicos mesclados aos líricos, em estrofes que iam se sucedendo livremente.

38. Alcméon era filho do adivinho Anfilau. Matou sua mãe, Erífila, por ter ela forçado o marido a ir cercar Tebas, sabendo que a missão era suicida. Mais tarde Alcméon, após abandonar a esposa Alfesibéia para se casar com Calirroe, morreu degolado pelos irmãos de Alfesibéia. Astidamante (poeta que viveu nos séculos V e IV A.C) sobre Alcméon.

39. Meleagro tomou parte na expedição dos Argonautas e matou, em seguida, ojavali de Cálidon. Também matou os dois irmãos de sua mãe numa briga.desesperada, Em desespero, ela jogou no fogo a tocha em que as Parcas haviam acorrentado o fio da vida de Meleagro. A tocha queima e Meleagro morre com a combustão.

40. Télefo era rei da Mísia. Quando os troianos foram cercados, ele correu a ajudá-los. Nas margens do rio Caíco, foi ferido por Aquiles. Usando a ferrugem da lança de Aquiles, Ulisses curou-o, fazendo que Télefo, por gratidão, se tornasse aliado dos gregos. Havia uma tragédia a respeito desta lenda, denominada Mísios, hoje perdida. Também Eurípides e Agatão escreveram tragédias, perdidas, denominadas Télefo.

41. Aristóteles censura os críticos do que seriam alguns defeitos das peças de Eurípides, em função das regras então codificadas sobre o teatro grego – como a repetição dos mesmos efeitos e meios, intrigas inverossímeis, etc.

42. Egisto aparece nas peças em que Clitemnestra é personagem. No Ajax de Sófocles, porém, Teucro, Menelau e Agamenon saem reconciliados pela intervenção de Ulisses.

43. Clitemnestra era filha de Tíndaro e de Leda. Seus irmãos eram Castor e Pólux, e a Helena que, na fábula de Homero, motivou a Guerra de Tróia. Seu marido Agamemnon, ao retornar de Tróia, foi assassinado por ela epor Egisto, que era amante de Clitemnestra. Os filhos famosos de Clitemnestra, Orestes, Ifigênia e Electra, planejam amatar a mãe. Ifigênia exclui-se do drama. Orestes, sempre incitado por Electra, mata sua mãe Clitemnestra e o amante desta, Egisto.

44. Alcméon era filho de Erífila.

45. Telégono, filho de Ulisses e de Circe ou de Calipso, tentou devastar a ilha de Itaca, aonde fora lançado por uma tempestade. Ulisses o enfrenta e é morto pelo próprio filho, que não o reconheceu. Sófocles escreveu uma tragédia (desaparecida) sobre o tema.

46. Antígona era filha de Édipo. É condenada à morte por Creonte, por ter sepultado seu irmão Polinice, que o tirano Creonte considerava traidor da pátria. Hëmon, filho de Creonte, suicidou-se porque amava Antígona, com quem ia casar-se. Também a esposa de Creonte se mata, e a injustiça é reparada com estas mortes.

47. Mérope de Acádia, esposa de Cresfonte. Eurípides escreveu uma tragédia a respeito de sua história. O marido de Mérope é assassinado por um tirano, que a desejava e tenta depois obrigá-la a casar com ele. O terceiro filho de Mérope, criado em segredo pelo avô, mata o tirano antes que consiga realizar seu intento.

48. Hele, filha de Atamante, rei de Orcômeno na Beócia, tem um irmão chamado Frixo. Os dois nasceram do primeiro matrimônio de Atamante. A madrasta do casal de irmãos, Ino, os perseguia e Zeus, para libertá-los, enviou um carneiro com velocino de ouro que os transportaria até a Anatólia. Hele caiu no mar que ganhou seu nome, e Frixo chegou à Cólquida. Os maiores dramaturgos da Grécia usaram essa história para compor tragédias, todas hoje perdidas.

49. Melanipo é personagem de uma tragédia de Eurípides, à qual deu o nome. Há um verso dessa tragédia no Banquete de Platão. Eurípides compôs outras tragédias usando Melanipo, mas todas foram destruídas.

50. Medéia é uma tragédia de Eurípides. Foi representada em 413 A.C.. Oartifício cênico a que Aruistóteles se refere é o carro alado que Medéia recebe de presente do Sol, puxado por dois dragões.

51. Cárcino de Atenas, poeta trágico (século IV A.C.).

52. Coéforas é a segunda obra de uma trilogia escrita por Ésquilo (séc. VI/V A.C.). A primeira peça é Agamenon, a segunda chama-se Oréstia e a terceira Eumênides.

53. Parece que este Políido é o mesmo Políido pintor, músico e poeta ditirâmbico que viveu no século IV ou final do século V.

54. Teodectes de Fasélis foi poeta trágico e orador. Viveu no século IV A.C. Seus personagens agiam e discursavam em tribunais.

55. As Fineidas dizem respeito aos filhos de Fineu, rei da Trácia, que deu ouvidos ao vitupério de sua segunda esposa e mandou vazar os olhos dos filhos de seu primeiro matrimônio.

56. Autor desconhecido.

57. Adivinho célebre, viajou com os argonautas. Sua mulher, Erífila, seduzida pelo feitiço de um colar, descobnriu o esconderijo onde ele estava, pois não queria participar da guerra contra Tebas. Aclméon, filho deles, apunhalou a própria mãe por vingança por haver esta descoberto o ardil de Anfiarau..

58. Ajax, filho de Télamon, suicidou-se após um acesso de loucura, provocado porque as armas de Aquiles foram dadas a Ulisses. Após ter matado as reses do rebanho que pertencia ao exército, ele volta a si e se mata. Há uma peça de Sófocles sobre o tema, onde o delírio de Ajax é provocado por uma deusa.

59. Íxion é punido, assim como Ajax, por seu excesso de orgulho. Zeus o leva para o Olimpo, onde Íxion ousa apaixonar-se por Hera. Zeus o precipita no Tártaro, onde tem que mover uma roda em movimento perpétuo. Ésquilo compôs uma peça a respeito deste mito.

60. Ftiótidas eram as mulheres da Ftia, pequena região onde Aquiles reinava. Sófocles escreveu uma sobre respeito o tema.

61. Sófocles e Eurípides fizeram peças sobre a tragédia de Peleu.

62. Estre capítulo, de pouca importância no que diz respeito à Teoria Aristotélica sobre a arte poética, está cheio de lacunas no texto original.

63. A obra de Arífrades foi toda destruída e não se tem notícia alguma deste poeta como pessoa.

64. Existem controvérsias a respeito desta interpretação feita por Aristóteles. A historiografia siciliana (Diodoro da Sicília, séc. I d. C) afirma que houve tratados entre Susa, Cartago e a Pérsia, e as expedições não foram, em absoluto, uma coincidência.

65. Infelizmente, Os cantos cíprios, escritos em onze livros pelo poeta Estásino de Chipre (do ciclo troiano), foram destruídos. Baseados n'Os cantos cíprios, outros poetas gregos construíram várias histórias que se tornaram célebres. A pequena Ilíada foi escrita por Lesqueos de Lesbos. Era também um trabalho importantíssimo. Os autores da lista de poemas mencionada por Aristóteles são: O juízo das armas — Ésquilo; Ajax — Sófocles; Filocteto — Sófocles e Ésquilo; Neoptólemo está em Filocteto — Sófocles; Eurípilo (restam fragmentos) — Sófocles; O mendigo, no Ulisses disfarçado, está na Odisséia; Lacedemônias, Sínon — Sófocles; Troianas — Eurípides; Saque de Tróia — Iofon, filho de Sófocles.

66. Os Jogos Píticos eram celebrados em Delfos, em honra de Apolo, de quatro em quatro anos. Mas não exitiam ainda, no tempo em que Electra viveu.

67. Xenófanes, filósofo eleata de Colofônia. Viveu na segunda metade do século VI A.C. e sua obra trata de teologia, criticando bastante as crendices e o politeísmo populares. Para Xenófanes, Deus é uno, eterno, imortal e espiritual.

68. Significa "a metade" ou "dois terços".

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