Arqueologia da mise en scène

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Sobre uma arte ignorada

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos, minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –, o espectador de cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua poltrona, virgem de hábitos e de leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, reinventar as tabelas de valores, enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os séculos liberaram da tarefa de julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope.

Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós o procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. Essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela, monstro de inocência e de rigor...

O cinema começa com o sonoro.

Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.

A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.

Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.

O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.

Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.

Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não reconhece.

A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas eras da humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição.

Tudo está na mise en scène.

A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang, O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano.

Documentário ou Feeria?

A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. A arte é a religião da lucidez.

Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.

O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte.

E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade, o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral, enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se reconciliar com ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse projeto em seu estado de absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade, 90 minutos para nada, pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o mérito de ser real.

Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.

A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feeria, se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a feeria autoriza a mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e a feeria, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável.

Vertigens e cintilações.

A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema.

Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa.

A Fascinação.

A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.

A montagem transparente.

Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência espectatorial a uma arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de Gance, as de Eisenstein, ou a polyvision que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal, traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo calculado, como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de transparente, puramente mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse erro é devido, conforme já destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva do cinema com as artes tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte da montagem, que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível.

Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.

DeMille superior a Hitchcock.

Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os enquadramentos bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal revelador de impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao recente Vertigo de Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como exemplos do que não se deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem, procedem da mesma impotência diante do ator, ao suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o ator, de tudo aquilo que está fora dele, da mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (...), deixando à câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-alívio atormentado e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo desenhar um homem, desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica.

Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço.

Preeminência do ator

Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiria um catálogo precioso, refinado – jóias gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços flamejantes, jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa outra série, navios longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o ator. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos, ele nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço da vida rumo a deus. Não, como em Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo a um criador, tema exterior à mise en scène, mas o homem tornado deus na mise en scène, pela revelação de seus poderes, brecha aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua dupla condição de arte e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por natureza no coração da fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do prazer, exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita do mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig, Mizoguchi[10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim, e que Hawks, Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. Quanto a Bresson, parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la.

Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria preciso demonstrar.

O Mal-entendido.

Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas linhas eu me faço entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias gerais, a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil, sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus personagens, para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Essas obras arejadas, sedutoras, amparadas de todos os prestígios da cor, do espaço e dos sentimentos fortes, das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks), das quais o único tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por sua ausência de justificação, sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São cegueiras desse tipo que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” da tela grande estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, mas Murnau, mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, permanece visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé.

O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal.

A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos.

É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hajji Baba de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela.

Michel Mourlet

[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte.

[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.

[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.

[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.

[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...

[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.

[7] Grifos meus.

[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.

[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.

[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.

[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas.

[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.

[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetiva porque seus colegas não o empregam.

Cahiers du Cinéma nº 98, agosto 1959

Tradução: Luiz Carlos Oliveira Jr.

"Realizador, metteur en scène, cineasta e autor são os principais nomes que designam, através das épocas de um século de cinema, aquele que fez um filme, e depois outro, e depois ainda outros: o primeiro possui uma conotação neutra, como se se tratasse de uma pura atividade material e mecânica, e se aplica a todos, ao passo que os outros três nomes sugerem cada um uma orientação específica no trabalho dos filmes aos quais se relacionam. Metteur en scène nos diz que há, como no teatro, atores e espaço para encenar, e sugere conjuntos de movimento e uma produção de imagens; cineasta, ele, evoca uma demiurgia mais obscura que se interessa mais pelos planos e seus agenciamentos orgânicos que a uma seqüência satisfatória de efeitos visíveis, enquanto que o autor de filme indica imediatamente essa consciência indiscutida de que o detentor do título ocupa uma posição precisa na produção cinematográfica, assume uma posição moderna de responsabilidade - reivindicada por si, reconhecida por outros -, e sugere também um modo individualista de acelerar as coisas e fazer um filme relegando a procura da beleza ou da eficácia, virtudes mais circunspectas, muito aquém da urgência de formular uma verdade ou um conjunto de verdades pessoais."

Jean-Claude Biette, Qu'est'ce qu'un cinéaste?, Trafic n° 18, primavera 1996

Os três espaços

O termo de espaço, no cinema, pode designar três noções diferentes:

1) O espaço pictórico. A imagem cinematográfica, projetada sobre o retângulo da tela - tão fugitiva ou móvel que seja -, é percebida e apreciada como a representação mais ou menos fiel, mais ou menos bela de tal parte do mundo exterior.

2) O espaço arquitetônico. Essas partes do mundo, naturais ou fabricadas, tais que a projeção sobre uma tela as representa, com maior ou menor fidelidade, são providas de uma existência objetiva, podendo, ela também, ser, em tanto que tal, o objeto de um julgamento estético. É com essa realidade que o cineasta se mede no momento da filmagem, que a restitui ou a trai.

3) O espaço fílmico. Na verdade, não é do espaço filmado que o espectador tem a ilusão, mas de um espaço virtual reconstituído no seu espírito, com o auxílio dos elementos fragmentários que o filme lhe fornece.

Esses três espaços correspondem a três modos de percepção pelo espectador da matéria fílmica. Eles resultam também de três abordagens, geralmente distintas, do pensamento do cineasta e de três etapas do seu trabalho, onde ele utiliza, a cada vez, técnicas diferentes. A da fotografia no primeiro caso, a da cenografia no segundo, da mise en scène propriamente dita e da montagem no terceiro. Para cada uma dessas três operações ele se beneficia de colaboradores especializados, os quais é de sua responsabilidade acordar as sensibilidades, a fim de que sua obra forme um todo coerente. Inútil sublinhar que a um contingente enorme de filmes falta essa unidade e que, por exemplo, as ambições da fotografia traem o espírito no qual foi construída a cenografia, uma vez que simplesmente não adensam o esforço de edificação da mise en scène.

Eric Rohmer, L'organisation de l'espace dans le Faust de Murnau, UGE, 1977

Não Toque no Machado (2007) - Jacques Rivette

"(...) Se o filme é fiel ao romance, ele não compartilha sua temporalidade. Há ali um ritmo fulgurante, aquele do teatro filmado (ou da televisão à la Santelli: ah, Le Théâtre de la jeunesse, que maravilha!), com seus cortes abruptos e suas cartelas; e ao mesmo tempo não, não se trata de teatro, trata-se do verdadeiro, do belo cinema clássico - destino do moderno -, e é absolutamente genial."

Orphée, em Préfère l'impair

Europa 2005 - 27 octobre (2006) - Danièle Huillet & Jean-Marie Straub



"(...) Aquele que se debate para criar um espaço realístico deve fazer a mesma coisa com o som. Enquanto escrevo estas linhas posso ouvir sinos de uma igreja badalando ao fundo; agora percebo o zunido de um elevador; o distante, muito abafado tinido de um bonde, o relógio da prefeitura, uma porta se fechando. Todos esses sons existiriam, também, se das paredes do meu quarto, ao invés de ver um homem trabalhando, estivesse testemunhando uma cena comovente e dramática como pano de fundo ao qual esses sons poderiam até assumir um valor simbólico - seria certo então deixá-los de fora? ... No verdadeiro filme sonoro a real dicção, correspondendo ao rosto sem maquiagem num cômodo de fato ocupado, significa a linguagem comum do cotidiano como é falada por pessoas ordinárias."

Carl Theodor Dreyer, Cahiers du Cinéma nº 207, dezembro 1968

Coisas Secretas (2002) - Jean-Claude Brisseau



« Coisas Secretas é de um lirismo perturbador, é uma seta sombria na paisagem do cinema francês. E também uma tentativa rara e rigorosa de tentar juntar, em pouco menos de duas horas sombrias e vivas, um sem fim de desejos, de pistas e de visões. Hitchcock e Sade, Marx e Marc Dorcel, Edgar Allan Poe e Bresson, o filme de empresa irônica e a grandiloqüência discreta dos movimentos dos aparelhos, a frontalidade e a sugestão fantasmagóricas, os mestres e os escravos, a loira e a morena: está tudo lá. Brisseau meteu na boca de uma das suas heroínas, a ex-striper, futura secretária Nathalie (Coralie Revel, que já nos tinha enlouquecido com o seu olhar triste em Les Savates du Bon Dieu), o programa minimal e megalômano do seu cinema: "Ousa!". Não é só uma palavra qualquer. É sim um mini-manifesto, clownesco e radical. Nada de mais sério, portanto.

A quem é que Nathalie diz isso? A Sandrine, empregada na boîte em que as duas se tentam safar, e que se muda para casa dela depois de ter "ousado", ou seja ter chegado ao orgasmo acariciando-se à frente dela. O segredo magnífico do filme é então revelado. É o sexo das mulheres. É o que elas fazem, sozinhas ou a dois, o que nós lhes podemos eventualmente fazer (olhar, tocar?). (...) Coisas Secretas conta a história necessariamente violenta de uma perturbação, e as simulações, reviravoltas, e vertigens que ela provoca. »

Olivier Joyard, Les yeux bandés, Cahiers du Cinéma n° 572, outubro 2002

Adeus ao Sul (1996) - Hou Hsiao-hsien



A visão de Adeus ao Sul se acompanha e deixa atrás de si um sentimento pouco freqüente, mesmo que diga respeito a uma verdade constante do cinema, a de um filme inteiramente fabricado com a luz, em que haveria mais interesse em construir um diagrama luminoso do que em resumir o roteiro – as atribulações de três jovens, dois rapazes e uma menina, entre marginalidade e desejo de se instalar, puerilidade e confrontações – cômicas, dramáticas ou marcada pela mediocridade do cotidiano – a uma realidade que eles não controlam nem compreendem, mas no sei da qual eles procuram todavia se inscrever. O regime luminoso de cada plano merecia ser descrito, pois esses são os planos, seus movimentos e suas variações, que escrevem a história de Adeus ao Sul.

Dez anos antes, em 1986, em Poeira no Vento, a luz total e a obscuridade eram motivos centrais do cinema de Hou Hsiao-hsien: passagem pelo negro total em favor de uma síncope do jovem herói durante a qual ele tem a visão de seu pai andando num túnel, e depois pelo branco total e a resplandecência na saída do túnel. Alternância cuja violência remete a uma aprendizagem da vida mostrada como uma aventura de percepção que deve conduzir o adolescente à descoberta da boa distância, nem muito perto nem muito longe, e sobretudo da boa luz, nem muito viva nem muito sombria. A insistência desses motivos é tão forte para que intervenha em quase todos os filmes de Hou Hsiao-hsien uma cena de falta de eletricidade, justificada ou não pela narrativa. Adeus ao Sul sutiliza essa aproximação – no antigo sentido de tornar sutil, de refinar ao extremo. Antes, sem dúvida faltava o essencial, a gama completa do que existe entre o branco e o negro. Agora se abre todo o espectro das situações luminosas intermediárias. A questão não é alterar o branco e o negro, mas de converter um no outro, estabelecer entre eles uma continuidade.

Um esmigalhamento e uma dispersão da luz, uma aparência de puntilhismo, ou de tachismo cinematográfico responde em Adeus ao Sul a essa exigência de uma luz mais fina. Os planos se rompem em mil pedaços, as fronteiras se enfraquecem, o recorte das coisas torna-se menos franco. Tudo que é visível está no limiar de flutuação do mostrado no não-mostrado – mas somente sugerido ou tido como “já visto”, “demais visto” ou “não merecendo ser visto”. E igualmente para tudo o que é audível. Adeus ao Sul dá a ouvir um encarquilhamento, um canto monótono de barulhos na sua maior parte binários: atritos, estalidos, crepitações, tinidos; pés sobre o chão, uma boca que masca, um trem que parte, um carro que roda, uma moto que tosse, um celular que toca, um jogo de computador que faz barulho, a chuva que cai. Por demais semelhantes, por demais numerosos, por demais dispersos, esses sons cessam de existir independentemente uns dos outros. Por amálgama, um magma unificado de signos não-significantes se forma, toda a banda sonora torna-se uma massa sonora neutra, um imenso barulho de fundo (ou de superfície). Existe barulho na linha, mas pelos obcecados em comunicação, isso é ainda a garantia de que a conexão ainda não se interrompeu.

O tema, se existe um, é elementar, é a vida: a vida como fato enérgico. Daí vem – é um ponto essencial – que o homem não se vê honrado de nenhum privilégio figurativo. O filme não procede somente com a desordenação, ou com o abandono das hierarquias espaciais e narrativas entre personagens principais e secundários. Ele coloca também em igualdade a figura humana com o resto. Os homens, em Adeus ao Sul, estão lá para fazer número. Suas camisas havaianas – a não ser que sejam simplesmente taiwanesas – os ajudam a se fundir no interior da intensa folhagem do plano. Foi isso sobretudo que mudou desde Poeira no Vento: as zonas de sombra não são mais as únicas a encobrir os relevos e a reduzir as diferenças, a própria luz interpreta agora esse papel; mas com um ganho de nuanças e sutileza. Um outro passo é dado com As Flores de Xangai, em que os corpos se superpõem e se conciliam ao cenário, mas em que a luz, mais contrastada, dá ao rosto uma autonomia e uma importância novas, o realça, o coloca à frente, faz dele o lugar do humano por excelência.

Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Uma estranha química trabalha em Adeus ao Sul. O plano, solução aqua-luminosa hiperreativa (cuja tinta dominante varia de acordo com os filtros), torna-se o meio em que o cineasta conduz suas experiências: condensação de energia, precipitações de corpos até então imperceptíveis ou pouco distintos entre si; ou, ao contrário, perda de energia, retorno dos corpos ao indiferenciado – e tudo está a ser retomado. Caso número 1: não muito longe do começo do filme, Biam discute gentilmente com quatro ou cinco amigos mafiosos: conversa mole, troca de amenidades, o sono que espreita; mas subitamente alguém, do nada, começa a chamar Biam pelo apelido infame de “Cabeça chata”. Ele, até então um pouco “vegetal”, joga para o alto tudo o que tem na mão, fica nervosíssimo, começa a gritar, se joga incontido para cima do adversário; zunzum, agarra-agarra, intervenção expressa de Gao – todo mundo acaba por se acalmar. Caso número 2: em outro pedaço do filme, Gao, Cabeça chata e Docinho acabam de ser liberados por seus raptores, no meio da noite e no campo; no finzinho da madrugada, o carro deles vira numa fossa e se enterra por alguns instantes no mato alto; baixa de energia, “pane”, atolamento, retorno à superfície plana e monocromática. Todo Adeus ao Sul passa assim do ruído ao silêncio, do manifesto ao latente, da atualização à desatualização (e inversamente). O plano é tomado entre dois extremos, a erupção e a extinção, mas ele oscila sobretudo em torno de uma posição intermediária, em que aparição e desaparecimento, presença e ausência deixam de se opor em proveito de uma qualidade geral de evanescência. Portanto, ela não é nunca estável nem confortável, mas sempre afetada por um certo grau de volatilidade: Adeus ao Sul pode se ler como a série de esforços constantemente reiterados por alguns jovens adultos para atingir uma existência separada e “normal”, garantir-se um nível de vida médio. A angústia de não conseguir (não ser ninguém, ou ser um frustrado), se traduz primeiramente em termos figurativos e energéticos, e somente depois em termos sociais. Pior ainda que o medo de ser banido do plano está o medo de se dissolver e de desaparecer numa espécie de indistinção ou de anonimato figurativo do qual Biam, o inútil, é a presa mais freqüente e o exemplo mais comovente.

Prova que, como ensina a poética chinesa, o vazio é uma dimensão do cheio. E, simultaneamente, que a abstração não está a ser encontrada fora da imagem, ou mesmo atrás dela, mas nela, na saída do visível (e do audível); o próprio invisível não sendo nada além daquilo que deixou de ser visível ou está à espera de sê-lo. Adeus ao Sul não é tanto um filme abstrato, e sim um que comporta em diversos lugares dimensões e prolongamentos abstratos, quando as figuras saem perigosamente delas mesmas, ou retornam ao fundo de onde tinham primeiramente emergido. A abstração, no limite, é uma qualidade natural do cinema, um hiperrealismo que se obtém à força de fragmentação ou de atomização do visível.

A energia tem toda sua significação envolvida em sua presença, a “besteira” e a fatal repetitividade de um puro . Há energia, há vida: verdade banal que exige entretanto ser sempre novamente redemonstrada. Ser o joguete da energia, é ser o joguete do tempo sem perspectiva do hábito. As existências de Gao, Biam e Docinho se limitam a uma série de gestos simples: beber, comer, brincar e falar como se fosse uma única e mesma coisa, um meio como qualquer outro de “permanecer vivo”; participar dessas reuniões automáticas de amigos em que alguns, a quem não será dirigida a palavra, foram convidados para fazer número, guarnecer o fundo das conversas e das salas de restaurante. Indefinidamente, é preciso lembrar aos outros e lembrar a si mesmo que estamos (ainda) aqui. No hábito se constrói a forma mais acessível, mas também a mais cinzenta, de presente, por simples ocultação do passado e do futuro. Um pouco rapidamente, talvez, disseram que o roteiro de Adeus ao Sul se inspirava no roteiro de Caminhos Perigosos. Se um fio de parentesco passa entre a máfia taiwanesa de Hou Hsiao-hsien e a máfia americano-siciliana de Scorsese, ele deve estar aí: uma vontade de “criar mundo” apoiando-se inicialmente na circulação in vitro de signos de reconhecimento (hábitos, uma linguagem, uma mise en scène, um folclore) e a continuidade de um tempo em comum, do que numa atividade verdadeira; um desejo patético de existir inseparável de uma forma de regressão: criancices excessivas (e grandiosas) dos mafiosos scorseseanos; em Docinho a roupa de boneca, a fixação no polegar e em alguns badulaques florescentes; em Biam a lentidão, o mutismo, a cabeça quente; em Gao, incapacidade dramática de cumprir com seus deveres de adulto (se casar, abrir um restaurante, não ser mais a vergonha de seu pai). Scorsese entretanto redobra esse tempo com uma espessura singular, mitológica e retrospectiva (a música, o cinema), que oferece a seus heróis, mesmo provisoriamente, uma cena para animá-los e projetá-los, enquanto que os de Hou Hsiao-hsien só podem contar com suas próprias forças para se manter na superfície. Nulidade dessas vidas? Talvez não. Vidas, em todo caso, consagradas ao esquecimento permanente e às ressurreições cotidianas à medida que elas não fogem do ciclo de baixas e recrudescências de energia; à medida que não surgir a autoridade de uma decisão, de uma escolha.

O milagre de Adeus ao Sul é que ele fala duas línguas. Aquela, estrangeira para nós, e extra-cinematográfica, da poética chinesa, em que a energia é uma noção fundamental e a interação o princípio de seu funcionamento: haveria no começo de toda realidade, não uma mas duas instâncias, terra/céu, desdobramento/redobramento, contração/expansão, etc. E uma língua mais familiar para um público ocidental, a língua de um mundo contemporâneo à qual não falta nenhum dos temas principais: a “perda dos limites”, a proximidade cada dia maior da velocidade e da estagnação, a comunicação vazia, o prolongamento indefinido da adolescência, a embriaguez sem conteúdo e o tédio permanente, a vizinhança da ociosidade e da ilegalidade; e também, tratando-se do presente de Taiwan, a vontade impossível de sair, de “dar adeus ao sul”. Duas línguas que, misturando-se, engendram um filme inédito, inaudito.

Emmanuel Burdeau, Hou Hsiao-hsien, edições Cahiers du Cinéma, 1999

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