segunda-feira, 18 de maio de 2009

Adeus ao Sul (1996) - Hou Hsiao-hsien



A visão de Adeus ao Sul se acompanha e deixa atrás de si um sentimento pouco freqüente, mesmo que diga respeito a uma verdade constante do cinema, a de um filme inteiramente fabricado com a luz, em que haveria mais interesse em construir um diagrama luminoso do que em resumir o roteiro – as atribulações de três jovens, dois rapazes e uma menina, entre marginalidade e desejo de se instalar, puerilidade e confrontações – cômicas, dramáticas ou marcada pela mediocridade do cotidiano – a uma realidade que eles não controlam nem compreendem, mas no sei da qual eles procuram todavia se inscrever. O regime luminoso de cada plano merecia ser descrito, pois esses são os planos, seus movimentos e suas variações, que escrevem a história de Adeus ao Sul.

Dez anos antes, em 1986, em Poeira no Vento, a luz total e a obscuridade eram motivos centrais do cinema de Hou Hsiao-hsien: passagem pelo negro total em favor de uma síncope do jovem herói durante a qual ele tem a visão de seu pai andando num túnel, e depois pelo branco total e a resplandecência na saída do túnel. Alternância cuja violência remete a uma aprendizagem da vida mostrada como uma aventura de percepção que deve conduzir o adolescente à descoberta da boa distância, nem muito perto nem muito longe, e sobretudo da boa luz, nem muito viva nem muito sombria. A insistência desses motivos é tão forte para que intervenha em quase todos os filmes de Hou Hsiao-hsien uma cena de falta de eletricidade, justificada ou não pela narrativa. Adeus ao Sul sutiliza essa aproximação – no antigo sentido de tornar sutil, de refinar ao extremo. Antes, sem dúvida faltava o essencial, a gama completa do que existe entre o branco e o negro. Agora se abre todo o espectro das situações luminosas intermediárias. A questão não é alterar o branco e o negro, mas de converter um no outro, estabelecer entre eles uma continuidade.

Um esmigalhamento e uma dispersão da luz, uma aparência de puntilhismo, ou de tachismo cinematográfico responde em Adeus ao Sul a essa exigência de uma luz mais fina. Os planos se rompem em mil pedaços, as fronteiras se enfraquecem, o recorte das coisas torna-se menos franco. Tudo que é visível está no limiar de flutuação do mostrado no não-mostrado – mas somente sugerido ou tido como “já visto”, “demais visto” ou “não merecendo ser visto”. E igualmente para tudo o que é audível. Adeus ao Sul dá a ouvir um encarquilhamento, um canto monótono de barulhos na sua maior parte binários: atritos, estalidos, crepitações, tinidos; pés sobre o chão, uma boca que masca, um trem que parte, um carro que roda, uma moto que tosse, um celular que toca, um jogo de computador que faz barulho, a chuva que cai. Por demais semelhantes, por demais numerosos, por demais dispersos, esses sons cessam de existir independentemente uns dos outros. Por amálgama, um magma unificado de signos não-significantes se forma, toda a banda sonora torna-se uma massa sonora neutra, um imenso barulho de fundo (ou de superfície). Existe barulho na linha, mas pelos obcecados em comunicação, isso é ainda a garantia de que a conexão ainda não se interrompeu.

O tema, se existe um, é elementar, é a vida: a vida como fato enérgico. Daí vem – é um ponto essencial – que o homem não se vê honrado de nenhum privilégio figurativo. O filme não procede somente com a desordenação, ou com o abandono das hierarquias espaciais e narrativas entre personagens principais e secundários. Ele coloca também em igualdade a figura humana com o resto. Os homens, em Adeus ao Sul, estão lá para fazer número. Suas camisas havaianas – a não ser que sejam simplesmente taiwanesas – os ajudam a se fundir no interior da intensa folhagem do plano. Foi isso sobretudo que mudou desde Poeira no Vento: as zonas de sombra não são mais as únicas a encobrir os relevos e a reduzir as diferenças, a própria luz interpreta agora esse papel; mas com um ganho de nuanças e sutileza. Um outro passo é dado com As Flores de Xangai, em que os corpos se superpõem e se conciliam ao cenário, mas em que a luz, mais contrastada, dá ao rosto uma autonomia e uma importância novas, o realça, o coloca à frente, faz dele o lugar do humano por excelência.

Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Uma estranha química trabalha em Adeus ao Sul. O plano, solução aqua-luminosa hiperreativa (cuja tinta dominante varia de acordo com os filtros), torna-se o meio em que o cineasta conduz suas experiências: condensação de energia, precipitações de corpos até então imperceptíveis ou pouco distintos entre si; ou, ao contrário, perda de energia, retorno dos corpos ao indiferenciado – e tudo está a ser retomado. Caso número 1: não muito longe do começo do filme, Biam discute gentilmente com quatro ou cinco amigos mafiosos: conversa mole, troca de amenidades, o sono que espreita; mas subitamente alguém, do nada, começa a chamar Biam pelo apelido infame de “Cabeça chata”. Ele, até então um pouco “vegetal”, joga para o alto tudo o que tem na mão, fica nervosíssimo, começa a gritar, se joga incontido para cima do adversário; zunzum, agarra-agarra, intervenção expressa de Gao – todo mundo acaba por se acalmar. Caso número 2: em outro pedaço do filme, Gao, Cabeça chata e Docinho acabam de ser liberados por seus raptores, no meio da noite e no campo; no finzinho da madrugada, o carro deles vira numa fossa e se enterra por alguns instantes no mato alto; baixa de energia, “pane”, atolamento, retorno à superfície plana e monocromática. Todo Adeus ao Sul passa assim do ruído ao silêncio, do manifesto ao latente, da atualização à desatualização (e inversamente). O plano é tomado entre dois extremos, a erupção e a extinção, mas ele oscila sobretudo em torno de uma posição intermediária, em que aparição e desaparecimento, presença e ausência deixam de se opor em proveito de uma qualidade geral de evanescência. Portanto, ela não é nunca estável nem confortável, mas sempre afetada por um certo grau de volatilidade: Adeus ao Sul pode se ler como a série de esforços constantemente reiterados por alguns jovens adultos para atingir uma existência separada e “normal”, garantir-se um nível de vida médio. A angústia de não conseguir (não ser ninguém, ou ser um frustrado), se traduz primeiramente em termos figurativos e energéticos, e somente depois em termos sociais. Pior ainda que o medo de ser banido do plano está o medo de se dissolver e de desaparecer numa espécie de indistinção ou de anonimato figurativo do qual Biam, o inútil, é a presa mais freqüente e o exemplo mais comovente.

Prova que, como ensina a poética chinesa, o vazio é uma dimensão do cheio. E, simultaneamente, que a abstração não está a ser encontrada fora da imagem, ou mesmo atrás dela, mas nela, na saída do visível (e do audível); o próprio invisível não sendo nada além daquilo que deixou de ser visível ou está à espera de sê-lo. Adeus ao Sul não é tanto um filme abstrato, e sim um que comporta em diversos lugares dimensões e prolongamentos abstratos, quando as figuras saem perigosamente delas mesmas, ou retornam ao fundo de onde tinham primeiramente emergido. A abstração, no limite, é uma qualidade natural do cinema, um hiperrealismo que se obtém à força de fragmentação ou de atomização do visível.

A energia tem toda sua significação envolvida em sua presença, a “besteira” e a fatal repetitividade de um puro . Há energia, há vida: verdade banal que exige entretanto ser sempre novamente redemonstrada. Ser o joguete da energia, é ser o joguete do tempo sem perspectiva do hábito. As existências de Gao, Biam e Docinho se limitam a uma série de gestos simples: beber, comer, brincar e falar como se fosse uma única e mesma coisa, um meio como qualquer outro de “permanecer vivo”; participar dessas reuniões automáticas de amigos em que alguns, a quem não será dirigida a palavra, foram convidados para fazer número, guarnecer o fundo das conversas e das salas de restaurante. Indefinidamente, é preciso lembrar aos outros e lembrar a si mesmo que estamos (ainda) aqui. No hábito se constrói a forma mais acessível, mas também a mais cinzenta, de presente, por simples ocultação do passado e do futuro. Um pouco rapidamente, talvez, disseram que o roteiro de Adeus ao Sul se inspirava no roteiro de Caminhos Perigosos. Se um fio de parentesco passa entre a máfia taiwanesa de Hou Hsiao-hsien e a máfia americano-siciliana de Scorsese, ele deve estar aí: uma vontade de “criar mundo” apoiando-se inicialmente na circulação in vitro de signos de reconhecimento (hábitos, uma linguagem, uma mise en scène, um folclore) e a continuidade de um tempo em comum, do que numa atividade verdadeira; um desejo patético de existir inseparável de uma forma de regressão: criancices excessivas (e grandiosas) dos mafiosos scorseseanos; em Docinho a roupa de boneca, a fixação no polegar e em alguns badulaques florescentes; em Biam a lentidão, o mutismo, a cabeça quente; em Gao, incapacidade dramática de cumprir com seus deveres de adulto (se casar, abrir um restaurante, não ser mais a vergonha de seu pai). Scorsese entretanto redobra esse tempo com uma espessura singular, mitológica e retrospectiva (a música, o cinema), que oferece a seus heróis, mesmo provisoriamente, uma cena para animá-los e projetá-los, enquanto que os de Hou Hsiao-hsien só podem contar com suas próprias forças para se manter na superfície. Nulidade dessas vidas? Talvez não. Vidas, em todo caso, consagradas ao esquecimento permanente e às ressurreições cotidianas à medida que elas não fogem do ciclo de baixas e recrudescências de energia; à medida que não surgir a autoridade de uma decisão, de uma escolha.

O milagre de Adeus ao Sul é que ele fala duas línguas. Aquela, estrangeira para nós, e extra-cinematográfica, da poética chinesa, em que a energia é uma noção fundamental e a interação o princípio de seu funcionamento: haveria no começo de toda realidade, não uma mas duas instâncias, terra/céu, desdobramento/redobramento, contração/expansão, etc. E uma língua mais familiar para um público ocidental, a língua de um mundo contemporâneo à qual não falta nenhum dos temas principais: a “perda dos limites”, a proximidade cada dia maior da velocidade e da estagnação, a comunicação vazia, o prolongamento indefinido da adolescência, a embriaguez sem conteúdo e o tédio permanente, a vizinhança da ociosidade e da ilegalidade; e também, tratando-se do presente de Taiwan, a vontade impossível de sair, de “dar adeus ao sul”. Duas línguas que, misturando-se, engendram um filme inédito, inaudito.

Emmanuel Burdeau, Hou Hsiao-hsien, edições Cahiers du Cinéma, 1999

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